Menu
Além do Quadradinho
Além do Quadradinho

Roadie, percussionista, produtora e muito mais

A segunda de quatro filhos, criada em Samambaia, em um barraco de poucos cômodos, onde teve as primeiras vivências com a arte. Conheça a multitalentosa Kika Carvalho

Thaty Nardelli

10/02/2023 8h00

Atualizada 13/02/2023 10h45

Kika Carvalho. Foto: Thaís Mallon

A segunda de quatro filhos. A menina mais velha, dos quatro, de pais brasilienses, criada em Samambaia, em um barraco de poucos cômodos, onde teve as primeiras vivências com a arte, como uma criança ativa, mas sem protagonismo. Mas… foi lá, também, que ela aprendeu não só o que é arte, mas também a questionar e a ser subversiva.  “Você acha que vai viver pra sempre de festa?”, era o que a mãe questionava. Hoje, com seus 32 anos, Kika Carvalho, é uma das maiores roadies — aqueles que colaboram para o sucesso de um evento do começo ao fim — percussionistas e produtoras de Brasília.

Quando a arte entrou na sua vida?

Sempre tive uma sensibilidade artística aguçada e uma ânsia por garantir que a arte fosse expressada em suas infinitas formas. Trabalhei com tatuadores e artistas plásticos. Me envolvi com moda, dança e outras manifestações, mas faltava encontrar onde eu me encontrasse… 

Conseguiu se encontrar?

Eu vinha passando por tempos difíceis, enfrentando dias escuros de uma depressão que por muito tempo andava comigo e, sem muita perspectiva de vida, então, minha tia, Paulinha, me convidou para participar de um ensaio em um grupo percussivo para mulheres. Acredito que foi nesse momento que meu eu artista “saiu do armário”.  

Você é roadie, percussionista e produtora. Como se divide nessas tarefas? 

Na verdade, eu não consigo! Dividir é quase impossível, porque são coisas que se complementam. Minha rotina na música me levou até o palco, me especializei em drum and percussion tech, no melhor português brasileiro possível, técnico de manutenção de instrumentos percussivos e tambores em geral, além de outros cursos, exatamente por que tenho apuração e visão de percussionista. 

E como esse curso mudou você? 

Minha vivência com a produção me faz uma técnica, mais organizada, além de poder estar melhor preparada por ter uma noção macro, do que está se desenvolvendo no evento e, tanto o envolvimento em produção como em função de técnica, me torna uma artista melhor, mais consciente e com maiores possibilidades de evolução.

Não sei se é impressão, mas acho que roadie é uma função muitas vezes exercida por homens… Como foi esse processo? Pode me falar sobre como exercer esse dom? 

Não é só impressão, isso é um fato! Também foi por esse motivo que senti a necessidade de ampliar meus conhecimentos. Eu tocava numa banda só com mulheres e era uma tarefa muito difícil. Me comunicar com os homens que ocupavam esses espaços na área técnica e encontrar um ponto de entendimento, o que refletia nas performances e na música, me fez passar a procurar mais informações técnicas e de forma autodidata. 

Curiosa e observadora, nasceu também a curiosidade? 

Também…  Isso cresceu o que já tinha em mim. Então, me tornei roadie e técnica de áudio. Esse é um processo que ainda vivo, em diversas profissões “denominadas masculinas”.  Mulheres, como eu, têm que se provar constante e diariamente. Encontramos situações em que o palco é um ambiente inóspito e agressivo para nós. Lugares que, às vezes, os homens se sentem ameaçados em seu espaço e dificultam o nosso acesso e a evolução profissional na área.

Grande parte é assim, “mas nem todos”, né? 

Seria injusto da minha parte afirmar que todos os homens que encontrei nos palcos da vida tem essa postura, conheci caras incríveis e que me fortaleceram muito no meu trabalho. Mas caras legais, nesse contexto, são exceções. É um processo denso e com muitas camadas, que reflete não só no resultado do trabalho, mas em todos os envolvidos. Um processo de resistência, troca e aprendizado. 

Com quais artistas você já trabalhou? 

 Eita… é tanta gente que eu to com medo de esquecer alguém e ficar mal com isso, mas vou tentar colocar aqui algumas experiências que foram incríveis pra mim, mas não significa que outras não tenham sido. Meu primeiro trabalho como roadie foi com a banda Maria Vai Casoutras e, tenho um enorme carinho por esse trabalho, muito pela trajetória e pelo trabalho dessas mulheres incríveis. Depois trabalhei em festivais e, gravações que me aproximaram de artistas de maior reconhecimento, como Lazuli, Maria Gadú, Francisco El Hombre, Sérgio Loroza, Ana Cañas, Jovem Dionisio, Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, Letícia Fialho   Deny Conceição, Adriana Samartini, Bloco Essa Boquinha Eu Já Beijei, FBC, Amaro Freitas, Black Pantera, Nando Reis, Ivisons, Crypta, Juliana Linhares, Crime Caqui, Realleza, Orquestra Quadrafônica… É tanta gente. Desculpa, até, se esqueci alguém. 

Qual sua principal função dentro do palco e como você entrega seu trabalho no dia a dia? 

Eu sou tipo uma gerente de loja na véspera do Natal. Tenho que estar a postos pra tudo funcionar bem, os vendedores estarem bem dispostos, o produto com qualidade e os clientes sempre bem atendidos, isso tudo em meio ao caos. (risos) Eu administro a montagem dos instrumentos dos músicos, a microfonação adequada para eles, o posicionamento deles no palco e o caminhar do show. 

Não é para qualquer um… 

Então (risos), sou suporte pleno aos artistas antes, durante e depois de cada evento, conseguindo garantir que tudo vai sair conforme planejado no tempo e no espaço que temos. Cada artista tem suas particularidades, cada show tem suas necessidades específicas, então todo dia é um trabalho diferente, em um lugar diferente com pessoas diferentes. Essa é a minha rotina.

Talvez eu esteja frisando nessa tecla do Roadie, porque é uma das profissões que trabalha por trás do que o artista vê, mas que tem a função principal que é a de entregar tudo perfeito na frente. Você poderia falar mais sobre isso? 

 Os profissionais técnicos costumam ser conhecidos como “a graxa”. Isso porque “sem graxa”, as engrenagens travam e nenhuma máquina funciona bem nessas condições. É exatamente nessa posição que eu vejo o meu trabalho. É mais que necessário que se reconheça isso. São detalhes e especificidades que fazem a completa diferença entre um bom evento ou completa tragédia, não só sobre a manifestação artística mas, sim um completo.

Sua função, então, é mais que necessária… isso?

A (o) roadie é mais uma peça dessa máquina que precisa funcionar perfeitamente, uma peça importante, mas que sem as outras peças complementares funcionando bem não faz muito sentido. O backstage é assim, vários braços carregando todos juntos. São muitos profissionais por trás de um trabalho completo  

Atualmente, com quais bandas você trabalha e o que exerce em cada uma delas? 

Tenho o privilégio de conseguir atuar em todas as minhas áreas de trabalho em parceria com artistas e agentes da cultura revolucionários no cenário de Brasília e do Brasil todo. Trabalho na produção, gestão técnica da artista Saraní, cantora revelação que tem referências pop afrolatinas. Faço a direção de palco do Bloco das Divinas Tetas, um dos maiores blocos e Carnaval da cidade que costuma arrastar um bocado de gente pelas ruas de Brasília.

Calma, que Carnaval tá aí… tem mais? 

Tem sim  (risos). Trabalho na gestão e assistência técnica do Lima Cruz Espaço percussivo, um estúdio dedicado a pesquisa e tecnologia voltada para a percussão onde administramos um dos maiores acervos de instrumentos do país. Também, no Lima Cruz, eu pude participar de todo o  processo de produção e gravação do álbum “Eu Já Passei Pelo Fogo”, da Ane Eôketu, artista que também acompanho nos palcos. 

Sou Percussion Tech de Larissa Umayta, sendo responsável pelo cuidado e manutenção de seus instrumentos e equipamento completo. Enquanto percussionista, integro a banda do bloco da Sereia Sem pé, bloco produzido e executado por mulheres e focado na segurança e conforto de milhares de foliões, banda na qual também faço a produção técnica. 

Sou fundadora, instrumentista e diretora musical da Banda Dona Chica, que busca referências no Axé clássico dos anos 90. Presto serviço de roadie para diversas outras bandas, como Brasília Ska Jazz Club, Pedro Alex, Aloizio, Barbara Silva, Jazz na Carta, Clima de Montanha…  Isso sem contar os muitos freelas, onde se abre um leque e infinitas possibilidades pelas conexões feitas em eventos, casas de shows e festivais que acontecem no Brasil todo.  

Quais os principais desafios que você enfrenta como agente de cultura de bastidor?

A carência de investimento e deficiência de recursos. Essa é a assombração! Seja na qualificação e atualização dos profissionais, seja na estrutura física e humana, sempre falta recurso para a entrega de um bom resultado. Por enquanto, a solução que a gente encontra é remendar tudo com fita   

Qual recado você daria a mulheres que querem ingressar nesse meio? 

Venha cheia de vontade de aprender, pois o palco é um lugar de constante aprendizado. Jamais escute alguém que diga que nesse ambiente não tem espaço pra você. Seja resiliente e aproveite todas as oportunidades que você tiver. Vista sempre preto e jamais perca o foco nos seus objetivos. Se você entender isso, todo o resto é cabo.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado