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Além do Quadradinho
Além do Quadradinho

O ensaio poético e afetivo do cantor e compositor Kirá

Kirá, 24, carrega uma obra autêntica que reinventa símbolos e expressões da cultura popular brasileira

Thaty Nardelli

16/10/2023 12h12

Foto: Bella Montiel

Com uma poesia própria inspirada no realismo mágico latino-americano e na poética das encantarias brasileiras, o cantor, compositor e “retratista de miragens”, Kirá, 24, carrega uma obra autêntica que reinventa símbolos e expressões da cultura popular brasileira. “Escrevo muito sob influência da estética do realismo mágico, de um real-absurdo, que é o que muitos cantadores fazem também: contam causos fantásticos e surreais para falar de coisas cotidianas. É um pouco por aí. O retratista é aquele que retrata exatamente aquilo que ele está vendo. Mas como retratar uma miragem?”, ressalta o artista.

Metamorfoseando uma gama de ritmos brasileiros e mundiais em um som único e original, Kirá acaba de lançar seu álbum, “Olho Açude”, que dialoga com os movimentos do MangueBeat e da Tropicália e evoca lendas mitológicas, blocos de rua consagrados, saudação a grupos tradicionais do Cerrado e movimentos de insurgência históricos do Nordeste.

A Além do Quadradinho desta segunda-feira (16) apresenta o cantor e compositor Kirá.

Foto: Divulgação

Você nasceu no Ceará, mas se mudou para Brasília cedo, com 11 anos. Quais suas memórias mais viventes dessa época?
Com certeza a casa dos meus avós, meu umbigo de mundo é lá, onde eu nasci. A primeira voz de Luiz Gonzaga, a primeira viola dos cantadores e as primeiras palavras de João Cabral que escutei foi lá. Depois, as praias de Icapuí, onde vivi boa parte da infância e sigo indo até hoje. Foi onde me aventurei em experiências lúdicas e mundos fantásticos criados pela minha imaginação e das outras crianças com quem subia e descia dunas e falésias, jogava bola na areia, passeava na jangada dos pescadores e pulava de casa em casa para comer um pouco do almoço de cada um. Foi essencial para minha criação e todo o universo que eu tento criar nas minhas composições. Por fim, o Junco no Ererê, o sertão, que marca para sempre a alma de quem por lá passa.

Você sente que a cultura nordestina veio contigo nessa fase? Ou você a redescobriu no decorrer da sua trajetória na capital?
Não acredito em “cultura nordestina”, acredito em culturas locais. O Nordeste é imenso para se ter uma só cultura. Mas quanto às culturas locais que existem no Nordeste, as que eu conheço e já tive contato são surreais, é muito difícil não ser arrebatado por alguma delas. Sinto que, de alguma forma, quando vim para Brasília, trouxe comigo suas reverberações e um estado de brincadeira que é parte primordial destas tantas manifestações. Mas de forma inconsciente, ainda.

Quando cheguei aqui, não tinha muita noção racional do que era o Ceará, ou que aquilo que eu escutava e via eram coisas específicas de lá. Foi só mais adolescente, perto dos 18 anos, quando comecei a me aventurar na música e nas minhas primeiras composições, no encontro com outros parceiros e parceiras da música, na troca de referências e inspirações, que fui entendendo o que a princípio era uma “música nordestina” e que aquilo dialogava comigo e com o que eu aspirava fazer.

Sempre digo que redescobri o Ceará aqui no Cerrado. Não só redescobri, como desfiz, recriei e modifiquei ele no meu imaginário. Porque o Distrito Federal é um caldeirão de muitos lugares, muitas origens, não tem como manter uma ideia fixa de outro lugar aqui. Foi preciso olhar o horizonte e redescobrir quem sou, onde vivo e o que eu faço com isso no lugar que tô agora.

Você destacaria algum momento marcante do seu verdadeiro encontro com a arte em geral?
Destaco meus amigos, meus parceiros de trabalho, minha família de sonho e música, todos os cúmplices com quem cometi poesia nessa cidade. Se não fosse eles, não sei se teria tido a coragem de cair nessa loucura de viver 100% de arte. Minhas grandes inspirações são essas pessoas que encontrei pelos caminhos e que foram me despertando a coragem para encarar essa vida. Um salve especial para a equipe que hoje corre comigo todos os dias e que, por sorte minha, são todos meus amigos. Obrigado pela coragem, Badke, Barbosa, Dudinha, Tufas, Caboquin, Huly, Isa, Iguinho, Amandinha, os compadres Dinhos, Leozin, Bellinha, Yaya, e geral mais que tá ligado.

Como você enxerga a poesia e qual a importância dela não apenas na sua música, mas em sua vida?
A poesia é quem guia tudo o que faço. Tenho até um pouco de vergonha de me declarar músico, porque me vejo mais como compositor do que qualquer outra coisa. Comecei a cantar e tocar porque, se eu não fosse eu quem fosse cantar minhas composições, ninguém iria. Acabei me apaixonando em cantar também, adoro a vida de músico, amo o palco e tal. Mas o motor principal de tudo é a palavra. Eu até queria ser escritor, na verdade, quando era adolescente. Escrever contos, essas coisas. Mas acabei me dando melhor em escrever letras de música (para a alegria da literatura brasileira), brincadeira. (risos).

A poesia tá em tudo, né?! Não só na palavra. Penso mais na poesia como uma maneira de olhar para o mundo do que necessariamente escrever um poema. Existem poetas e poetisas por aí que nem escrevem, mas veem o mundo com poesia, andam com poesia, falam com poesia, atendem no bar com poesia, fazem um móvel com poesia, rezam com poesia. A poesia guia minha vida. A poesia é a brecha, o escape, mas também uma realidade sólida. Lançar mundos no mundo. Acho que é um pouco sobre isso.

Em seu primeiro álbum, o “Semente de Peixe”, ainda como Kirá e a Ribanceira, vocês apresentaram uma forte influência nordestina. Como foi esse início para você?
Foi espontâneo, e isso é muito bonito. Eu tento sempre me manter espontâneo nos processos de criação, principalmente de álbuns. “Semente de Peixe” foi uma espécie de explosão de tudo o que a gente vinha querendo representar na época. É a fronteira entre o Ceará e o Cerrado, tem muito desses dois lugares. A lembrança de lá com a vivência daqui. Era um momento em que ainda não existia, para mim, um limite bem traçado do que era cerratense e cearense Não que hoje eu já tenha esse limite definido, mas que, de alguma forma, esse álbum representa um novo ponto de partida para o que eu venho fazendo depois dele. Cada álbum vai ser um novo ponto, não tem como voltar. Foi espontâneo, é isso. E agradeço por ter sido assim e por tudo que me abriu por conta dele.

Depois disso, você lançou trabalhos que trazem outras influências. Como foi esse processo de se redescobrir e traçar seu próprio estilo?
É um pouco sobre o fato de cada trabalho ser um novo ponto de partida, não tem mais como voltar. Ou você vai além, ou não faz mais nada. É o que eu escuto na minha cabeça quando vou fazer algo novo. A gente vai ficando mais criterioso com o tempo, e isso é bom, traz maturidade, mas também pode ser ruim caso não lhe permita experimentar tanto e quebrar identidades já “definidas”. Por exemplo: eu sou muito chato com minhas letras, não consigo fazer uma letra qualquer, sem identidade, fico me atormentando até que eu sinta que aquilo tem a ver com a estética que venho construindo no meu jeito de escrever. Sou muito crítico com isso. Mas para que isso aconteça, tem que ter espontaneidade, se virar meramente estético/racional, não faz sentido, e se for igual ao que já foi feito, pior ainda. É preciso se esticar, testar o limite da sua identidade, para que novas estéticas apareçam.

Recentemente, você lançou seu novo EP, “Olho Açude”, que traz uma gama de ritmos brasileiros e mundiais em um som único e original. Como foi o processo de criação e produção do álbum?

Foi também espontâneo, mas com mais maturidade, eu sinto. Diferente do “Semente de Peixe”, em que as músicas já estavam praticamente estruturadas, porque tocávamos muito elas ao vivo e as gravações de estúdio foram basicamente em cima dos arranjos dos shows, o “Olho Açude” nasceu completamente do zero, só tínhamos uma voz e um violão base. E isso foi mágico, porque deu possibilidade para criarmos e desenvolver mil possibilidades. É incrível não saber o que aquela música vai se tornar. A primeira coisa que fizemos foi as ambiências das músicas, o sútil, e isso para mim é muito simbólico e dialoga muito com toda a proposta do EP. Depois, fomos chamando alguns músicos que admiramos e são parceires nossos para gravar. Sabíamos aonde queríamos ir, mas a liberdade criativa na hora do “REC” é onde a magia acontece. Deixamos tudo acontecer de forma muito livre e espontânea.

Como você disse, além de você, outros parceires participaram desse processo de criação…
Além de mim, quem conduziu todo esse processo de captação e produção foi meu irmão Pedro Badke e nosso outro irmão Lucas Barbosa, sempre lá do lado, pensando em arranjos e criando ideias. A maior parte do EP foi gravado na ‘Sala Sete’, que é o home-studio do Badke, onde eu gravo basicamente tudo que faço. Mas também contamos com o apoio do Sapucaia Lab, do Dinho Lacerda, e do Som de Sobra, do Felipe Fiúza.

Vemos em seu álbum a água como um dos elementos que não apenas guiam as composições, mas atuam como metáfora dos estados afetivos e sentimentais das músicas. Como surgiu essa ideia de trazer a água para guiar o álbum?
A ideia veio a partir das músicas. Em determinado momento, me vi com algumas composições que dialogavam tematicamente, todas elas tinham a água envolvida em suas narrativas. São composições que refletem um período em que eu estava voltado para um lugar mais interno e íntimo dentro de mim, em que o amor, as dúvidas, os sonhos, as relações, as emoções instáveis e o afeto percorriam a poética dessas canções. E água surgiu como esse espelho-metáfora para esse turbilhão de sentimentos. A água corrente, água parada, o vapor, a nuvem, a chuva, o rio, o açude, o gelo, a cachoeira, diversas formas de água, diversas formas de sentir. A ideia veio porque a música continha isso. Mas também fui percebendo outras camadas, no sentido de me aproximar mais do Cerrado por meio das suas águas. Cerrado é o berço das águas: tem rio, cachoeira, tem açude quando chove, tem lago, lagoa… foi uma forma de conectar o que eu faço com o que é daqui. E é onde eu também me apaixonei. É sobre um amor-água.

Inclusive, no EP, você evoca figuras mitológicas e saudações a grupos tradicionais do próprio Cerrado. Pode falar um pouco sobre isso?
Durante o processo de criação da parte visual do EP, conversando com o Caio Amaral e Rebeca Benchouchan (fundadores da Cuia, o coletivo audiovisual que assinou a produção visual do disco) sobre toda essa questão da água como matéria-guia do conceito do “Olho Açude”, surgiu a ideia de criar uma figura que representasse essa metáfora sentimental-espiritual que acompanha o eu-lírico do EP em suas diversas fases dentro da narrativa construída. Então, eu convidei Francisco Rio (figureiro, brincante, cineasta, figurinista e artista-criador múltiplo) para criar essa tal figura, e acabou nascendo como o Correnteza, o Cabeça de Barco, e que é fundamental em toda a estética e conceito desse trabalho.

Em diversas manifestações brasileiras existem figuras que brincam, dançam e fazem parte do universo desses brinquedos populares. O Boi tem, o Cavalo-Marinho e o Maracatu Rural também, entre outras. Aqui no Cerrado existe o Seu Estrelo, grande referência para mim e que também brinca com essas figuras. A ideia foi não só trazer e exaltar como referência essas tradições, mas dar vida às nossas próprias brincadeiras e também torná-las reais.

Foto: Divulgação

“Olho Açude” tem colaboração com diversos músicos e musicistas do Distrito Federal. Em especial, poderia falar sobre seu encontro com o cordelista Sabiá Canuto?
Sim, “Olho Açude” é coletivo, são muitas colaborações. É um trabalho totalmente independente, feito sem grana nenhuma, recurso de nada. Cada pessoa que chegou junto, botou fé e contribui de alguma forma, gravando instrumentos, filmando, produzindo, arranjando, foi essencial e necessária para esse trabalho ser o que é. São muitas pessoas, agradeço profundamente a todas elas. Sobre o nosso poeta Sabiá, para mim, é um encontro mágico. Um grande poeta da cidade e do Cerrado e uma grande pessoa que, em breve vai tá lançando seu livro de poesias. Dá-lhe vida, poeta!

Falamos muito sobre poesia e palavras. De onde surgem suas inspirações na hora de compor?
Meu processo de composição é bem lento, na verdade. Mas, ao mesmo tempo, constante. Não sou desse tipo de gente que escreve música de uma ‘lapada’ só. Tô sempre escrevendo, sempre com meu caderninho e uma caneta por perto por onde eu vou. Escrevo uma coisinha aqui, outra ali. E no fim, as palavras vão se encaixando, vão pedindo pra dizer algo, pra onde querem ir, são elas que ditam o caminho e o ritmo. “A inspiração vem pela transpiração”, como diz Ney Matogrosso. Não sei como ela vem, nem quando vem, mas é cotidianamente que ela tem que ser cultivada, mesmo que não criando nada.

Você se define como um “retratista de miragens”…
É muito sobre essa coisa da palavra, da poesia, de ser uma brecha, um escape da realidade e, ao mesmo tempo, ser a própria realidade. Isso, na verdade, é uma frase que alguém escreveu falando sobre o Ariano Suassuna que eu meio que ‘roubei’ para mim. Porque eu muito sob influência da estética do realismo mágico, de um real-absurdo, que é o que muitos cantadores fazem também: contam causos fantásticos e surreais para falar de coisas cotidianas. É um pouco por aí. O retratista é aquele que retrata exatamente aquilo que ele está vendo. Mas como retratar uma miragem? O que essa miragem, esse delírio, tem de real? Será que, na verdade, essa miragem não é a nossa mais profunda realidade?

No palco, você apresenta uma potência muito forte. Quais são suas principais referências estéticas?
Gosto muito de shows explosivos e da catarse que o palco proporciona. É apoteótico. Então, sempre busquei referências nesse sentido, como BaianaSystem, Francisco El Hombre, Mano Negra, Planet Hemp, Chico Science, Elza Soares; coisas novas, como Mateus Fazeno Rock, Getúlio Abelha; e a galera do DF, como Murica, Ane Êoketu, Anna Moura, Nanãn, Mat e muitos outros. Gosto de tentar absorver tudo que me instiga.

Você é filho de um dos grandes nomes da música mundial, o Manu Chao. De alguma forma, ele influenciou sua carreira na arte?
Com certeza me influenciou bastante. Ter um pai ou algum familiar próximo, que te ensina a tocar violão, que você vê vivendo de música, cantando, escrevendo, que te leva pras tocadas na casa de outras pessoas artistas, nos botecos da vida pra tocar junto e aprender na prática, por si só, seja quem for, acredito que seja uma influência forte na vida de alguém. Acho que a grande influência do meu pai sobre mim, é muito mais sobre a pessoa que ele é do que o superstar. Muito do que eu aprendi sobre música e presença de palco foi vendo ele cantando com os amigos em algum boteco no Ceará em vez de algum palco grande por aí. O que meu pai me ensinou e o que eu admiro nele tá muito mais fora do que dentro do palco. E olha que eu sou fã dele no palco também.

Você propõe uma reflexão sobre a construção de uma nova identidade cultural candanga…
É a “Candangaria”. O DF é muito inovador, muito próprio, e eu sinto que estamos começando a perceber de fato isso. Nós, artistas daqui, dessa geração de uns tempos pra cá, acho que sempre entendemos que existia algo único aqui, algo que agora tá fervendo. É uma cidade nova, com muito espaço para criar, por isso essa coisa da “nova identidade”. Porque a identidade daqui não é uma sonoridade em comum, a gente cria múltiplas sonoridades, cada qual com suas próprias características. O nosso ponto em comum é que a palavra daqui é única, não tem igual. De novo, a palavra. A gente tem um cuidado e uma força com a palavra muito nítida. É o que eu sinto.

Uma nova geração que, a cada dia, vem fazendo algo com uma identidade muito própria, né?!
Sim! A gente faz a palavra dançar, é a palavra quem dita o som da música, na maioria dos artistas que admiro aqui. Pô, a gente tem Letícia Fialho, Murica, Guilherme Cobelo, Anna Moura, Mat, Pratanes, Ane Êoketu, Asú, Zapatta, sabe?! Haja caneta, meu DF! A construção tá feita, é óbvio que vamos estar sempre nos desenvolvendo e aprofundando a nossa cena. O que falta é um olhar, um cuidado, um reconhecimento por parte do mercado cultural brasiliense e nacional com a gente. Não somos regionais para o resto do país, fazemos parte do mesmo patamar do grande eixo. E também somos culturas locais no DF, e isso devia ser sinônimo de um peso e um reconhecimento enorme para a cena da cidade, e não de descaso, como muitas vezes acontece. Salve a nossa cena, nosso movimento, nossos artistas e também as nossas produções culturais, que tem muita gente trabalhando para a transformação dessa cidade.

Foto: Divulgação

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