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Mídias e Identidade

Clubes, blacks e musicalidade

Arquivo Geral

21/08/2017 10h07

Admiradores do black music, em Salvador. Laquês, trajes e publicações norte-americanas e uma miss! Afora a narrativa racial que está evidente nessa primeira sentença há outro fator que certamente passa despercebido para muitos no Brasil. Ele está entrelaçado a todas essas informações, embora não seja tão aparente. Em outras palavras, o surgimento e as atividades dos clubes sociais negros e as influências que receberam e em certa medida ainda absorvem dos Estados Unidos da América.

“Treze de Maio”, “28 de Setembro”, “Ilê Aiyê”, “Aristocrata”, “Floresta” e “Renascença” são senhas para ingressarmos nesse universo interessante que une resistência ao racismo, articulação social, busca da auto-estima e, sobretudo, a percepção de que a veia artística, sobretudo a musical, pode servir de instrumento para que negros e negras organizem um tecido social digno, lúdico, ao mesmo tempo combativo, do ponto de vista militante.

A história dessas organizações inicia-se no Século 19, com a fundação do Clube Floresta Aurora, em 1847, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

“O grande celeiro dos clubes sociais negros do país está no Sul do Brasil. Depois do Floresta, o mais antigo está no Paraná, é o 13 de maio”, explica Luiz Carlos Oliveira. Segundo ele, a relação cultural com os EUA é parte intensa dessa trajetória. “Eu dancei muita black music, como o charme, na década de 70, enfim, os ritmos americanos sempre foram muito tocados”.

Desde 2006, os representantes dessas associações de vários pontos do país vêm realizando eventos e outras ações para resgatar esse histórico e fortalecer as entidades. De acordo com Oliveira, um dos projetos é pesquisar origens culturais que foram significativas e que vieram “lá de dentro dos guetos americanos para o nosso país”. Além do interesse no viés norte-americano, ele acrescenta que há intenções de se estudar sobre intercâmbios com a Jamaica, berço do reggae e países africanos.

Quanto à musicalidade, Oliveira considera que essa influência norte-americana continua existindo. “A gente observa que a juventude ainda curte os ritmos blacks dos anos 60 e 70”. Na visão do representante, os clubes sociais negros também absorveram bastante do ponto de vista comportamental, como cortes de cabelo e o modo de se vestir. “A calça boca-de- sino e a pantalona foram uma demonstração dessa identidade que absorvemos dos EUA”, comentou.

Em São Paulo, Martha Braga tem depoimentos semelhantes sobre essa conexão. Ela foi presidente por três mandatos, uma como vice e outra como presidente do conselho fiscal do Aristocrata Clube. A agremiação é reconhecida como o mais bem sucedido ou ao menos o mais famoso e glamoroso clube social negro da terra dos bandeirantes.

O Aristocrata completou um cinqüentenário de existência, em 7 de março, deste ano – foi fundado em 1961. “Nessa época, a coisa estava pegando fogo nos EUA e nós tínhamos aquela postura de nos espelharmos nos nossos atletas da mesma forma que acontecia com americanos. Um dos nossos fundadores foi o Oswaldo de Souza, que era maratonista e tinha também o José Carlos Bauer, que jogava no São Paulo. O Agostinho dos Santos também era um bom jogador de futebol”, recorda.

Por essas razões, Martha citou o impacto que atitude do boxeador Muhammad Ali-Há (Cassius Marcellus Clay) causou quando perdeu o título mundial ao negar-se a lutar na Guerra do Vietnã, em 1967. “Para nós aquilo foi muito forte, ou seja, a determinação dele de não considerar certo matar pessoas que sequer conhecia”.

O magnetismo de Muhammad Ali não se deu meramente à distância para os associados do Aristocrata. O boxeador como outras personalidades norte-americanas estiveram em visita presencial no clube paulista. “Como o Agostinho dos Santos fazia apresentações no Canal 7, que hoje é a Record, quando viam esses cantores e esses artistas americanos, ele os convidava. Isso aconteceu, por exemplo, com o Nat King Cole. Numa oportunidade, O Billy Paul de tantas vezes que já tinha vindo, chegou a aparecer sozinho, como se fosse íntimo”.

Martha detalha que a Revista Ébone, publicação clássica dos negros norte-americanos, foi outra vertente dessa influência. “O meu pai gostava muito de ler. E tinha um dos sócios do Aristocrata, o Paulo Roberto, que comprava e traduzia a revista. Era muito interessante ver aqueles produtos para a beleza. Nós admirávamos muito e pensávamos que o Brasil nunca chegaria a ter algo parecido. Isso tudo sempre influenciou o negro paulista”.

A trajetória do Aristocrata tem a ver com outros clubes sociais negros paulistas com trajetórias mais modestas. No estado há vários “13 de Maio”, em referência à Abolição, como em Piracicaba e Itapetininga e “28 de Setembro”, em alusão à Lei do Ventre Livre, nome das agremiações de Sorocaba e Jundiaí.

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Vera Lúcia. Foto: Divulgação

A biografia singular de Vera Lúcia Couto dos Santos é um caso à parte nessa interação com os norte-americanos. Hoje ela é uma senhora de 67 anos prestes a se aponsentar como servidora pública estadual do Rio de Janeiro. Mas em 1964, a carioca atraiu holofotes da mídia nacional, pois naquele ano tornou-se a primeira guanabarense, então Distrito Federal, a tornar-se Miss Brasil Internacional.

A beldade de Vera Lúcia despontou no Renascença Clube, a associação mais famosa do Rio de Janeiro. Fundado em fevereiro, de 1951, a associação foi fruto da articulação de um grupo de negros de classe média, no bairro do Méier. Um dos motivos para se criar a associação foi reagir à discriminação e rejeição praticada por clubes cariocas.

Um dos trunfos históricos do “Rena”, como é carinhosamente chamado pelos associados foi ter sido motivo de reportagem no Jornal New Yoork Times, nos anos setenta, por ser entendido, na época, como palco de transformações da sociedade negra carioca.

Pelo “Rena”, Vera Lúcia ficou em segundo lugar no concurso de Miss Brasil, depois de ter sido a vencedora no Miss Brasil Internacional. Essas consquistas lhe serviram de “passaporte” para concorrer em Long Beach, na Califórnia, em outra disputa mundial, quando ficou em terceiro lugar, atrás da norte-americana Linda Ann Taylor e da colombiana Gemma Teresa Guerrero Cruz.

Vera Lúcia relata que em Long Beach teve contatos com muitas famílias negras. “As pessoas perguntavam porque eu estava participando de um concurso de brancos, pois lá existia um concurso de misses negras, o Miss Ébano. Então, eu explicava que no Brasil havia um clube que tentava colocar as moças negras em igualdade de condições na sociedade”, recorda.

Depois do sucesso como miss, Vera Lúcia experimentou por algum tempo a carreira no teatro. “Não fui muito longe, porque era tímida, depois me casei tive filhos”, comenta a modesta servidora pública. No entanto, o cancioneiro popular cristalizou o histórico dela por meio da música “Mulata Bossa Nova”, de autoria de Roberto Kelly, à época interpreta por Emilinha Borba. A marchinha fez sucesso no carnaval de 1965.

Fosse hoje, certamente, o nome da obra teria que ser outro, já que a militância da igualdade racial rejeita veementemente o conceito de mulata, tido como pejorativo. É da militância em atuação que vem outro depoimento interessante sobe essa relação entre Brasil e EUA, no que ser refere à cultura de clubismo e da black music.

O professor da Universidade de Brasília (UnB), Nelson Inocêncio, afirma que se tornou ativista da igualdade racial por ter freqüentado os bailes blacks, que foram muito populares nos anos setenta e oitenta no eixo Rio-São Paulo. “Enquanto tocavam as músicas, eles projetavam imagens da manifestações dos EUA, enfim, fui ganho para a causa por causa daquilo tudo”, afirma.

O Nordeste brasileiro também pode ser incluído nesse contexto. Prova disso, nos fornece o presidente do Bloco Afro-Cultural Ilê Aiyê, de Salvador, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô. Ele revela que a entidade que hoje é símbolo de preservação do legado africano teve por embrião um grupo de jovens que se reunia para “curtir” a black music na capital baiana.

“Nós tínhamos uma influência muito forte do movimento negro americano. Aqui a estética, o cabelo e a roupa o sapato foram adotados pela juventude negra. Tanto que o nome que eu queria para o bloco era Black Power”, disse Vovô. “Nós éramos conhecidos como os browns”, completa.

A ideia de dar um nome americanizado ao bloco não vingou por conta de uma questão política. “Por conta da ditadura nos chegavam orientações subjetivas. Tinha, por exemplo, uma pessoa da Polícia Federal que morava aqui no Curuzu, que nos aconselhou a não usarmos o nome Black Power porque poderíamos ter problemas com o sistema repressivo”, explica Vovô.

Apesar de o bloco ter preferido, a partir do nome, trilhar outro caminho, essa influência norte-americana esteve presente. Vovô resgata que nos carnavais de 1991 e 1992, o Ilê Aiyê teve por temas a “América Negra” e “O sonho de Marcus Garvey”, ideólogo que nos EUA pregou o retorno do povo negro à África.

Atualmente, ocorre uma inversão nessa lógica de influências. Vovô detalha que a cada ano tem se tornado mais freqüente a visita de negros norte-americanos ao Bloco Ilê Aiyê. “O que percebo é que embora lá (EUA) existam muitos centros culturais, eles vem para cá com a expectativa de reaprender essa coisa que temos, ou seja, orgulho das raízes africanas, essa ancestralidade. Há bem pouco tempo, esteve aqui em Salvador um grupo de afro-americanos da Filadélfia”.

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