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60 Anos, 60 Histórias

Varnhagen, Primeiro artífice da mudança

Redação Jornal de Brasília

05/02/2020 8h58

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Em Brasília, poucos sabem quem foi Francisco Adolfo de Varnhagen — pelo menos fora das universidades e dos ambientes de pesquisa. Não há, na capital, menção alguma ao Visconde de Porto Seguro, diplomata, historiador e autor de História Geral do Brasil — um dos primeiros estudos a atribuir um passado ao recém-formado país. A referência mais próxima a ele no Planalto Central está em Formosa, onde é nome de rua. No século XIX, porém, Varnhagen foi um dos “mudancistas” mais populares, com diversas republicações de suas obras, e em pelo menos quatro volumes da bibliografia do paulista é possível extrair defesas claras da necessidade de mudança da capital. Talvez seu relativo sumiço da história se relacione a certas posições polêmicas, como se verá a seguir.

Nos primórdios da discussão sobre a mudança da capital, porém, Varnhagen lembra o personagem da canção Tropicália, de Caetano Veloso. Foi ele quem organizou o movimento que, mais tarde, inaugurou um monumento no Planalto Central do país. “Eu acredito que ele foi a referência maior [para a mudança] até o final do século XIX”, comenta o professor Kelerson Semerene, do Departamento de História da Universidade de Brasília. “Ele também foi o mais citado nas discussões da Constituinte de 1891”, acrescenta.

É na Constituição de 1891, após a Proclamação da República Brasileira, que é — pela primeira vez — instituído artigo que fala da mudança da capital do Rio de Janeiro ao interior do país. A previsão de uma nova capital para a nova forma de governo instituída no Brasil foi registrada no artigo 3º da Carta Magna.

Antes da instituição desse compromisso na Constituição, foi Varnhagen quem, desde a primeira metade do século XIX, fez, em diversos comentários, a defesa de uma capital interiorizada. “Ao observar o mapa, parecia-nos que estaria ela muito mais resguardada no centro, como está no corpo humano o coração”, diz ele, na introdução de A Questão da Capital: Marítima ou no Interior?, compilado de considerações sobre o tema publicado em 1877. Seis anos depois, em nota à publicação Épicos Brasileiros, Varnhagen, tal qual o inconfidente Joaquim José da Silva Xavier, propõe o município de São João Del Rei como sede do Império.

Logo, porém, o historiador avança para a ideia de construção de uma nova cidade para servir de capital. Em 1849, quando da distribuição do primeiro volume do Memorial Orgânico, Varnhagen considera “como verdadeira inspiração encontrar uma paragem que, a todas as luzes, nos pareceu mais vantajosa” e elenca 12 motivos — que vão de integração do território, passam pela segurança nacional e abordam aspectos comerciais — pelos quais o poder não deveria se estabelecer em uma cidade já edificada. “Todas têm o vício da origem, proveniente de uma riqueza que já não possuem”, afirma o autor.

Para Kelerson Semerene, é prova de que o projeto de Varnhagen não era apenas de transferência, mas de uma reorganização nacional. “Em função dessa primeira obra, o senador por Pernambuco Hollanda Cavalcanti apresenta uma proposta de transferência da capital em 1852.”

Aos 60, como Brasília

Foto : Acervo Histórico Formosa Rua Visconde de Porto Seguro

Varnhagen não ficou apenas no vislumbre da ideia: resolveu observá-la na prática. O Visconde de Porto Seguro foi também um pioneiro. Já sexagenário, montou um cavalo e visitou o local que apontou três décadas antes nos mapas, sempre enviando cartas ao ministro da Agricultura. Apesar de não ser o objetivo da missão, Varnhagen teceu comentários esperançosos quanto à mudança da sede do Império àquelas localidades então despovoadas no coração do território brasileiro.

Com visão de futuro, apontou para o entroncamento das lagoas Feia, Formosa e Mestre D’Armas como um ponto ideal para o surgimento de uma nova civilização. Quanto à topologia, disse ser o ambiente adequado tanto em relação a questões de segurança quanto ao abastecimento de abundante água à capital. “São dois chapadões de fácil acesso, qualquer dos quais prestaria assento a uma povoação, desde logo, com a perspectiva de poder estender até mais de um milhão de almas.”

Desta visita nasceu A Questão da Capital, já citado, que reúne considerações de uma possível transferência da sede do Império. Publicado um ano antes da morte de Varnhagen, em Viena, na Áustria, onde o Visconde encabeçou a missão diplomática brasileira, o livro acrescenta mais argumentos à ideia do autor, que finaliza a obra em tom pessimista. “Infelizmente, tudo de novo ficou em nada: voces clamantes in deserto. Mas nem por isso devemos esmorecer: tenhamos fé no futuro; que o dia da conversão há de chegar.” Apesar do desalento, 13 anos após sua morte a edificação de uma nova capital viraria dispositivo na Constituição Republicana.

Contradições para a eternidade

Mesmo que tenha colaborado para levar do Rio de Janeiro a sede do Poder Público nacional, o Visconde de Porto Seguro se eternizou no coração da boemia tijucana, na Zona Norte da capital fluminense. Cercada por bares e restaurantes, a Praça Varnhagen — ou “Vanhargem”, no colóquio popular — é até hoje um reduto da noite carioca. A homenagem foi rendida ao historiador graças à colaboração para a formação da história brasileira. Ademais, pela extensa bibliografia publicada, Varnhagen recebeu a cadeira 39 da Academia Brasileira de Letras, da qual é patrono.

As posições semi-ocultas do imortal

Nem tudo, porém, é louvável na biografia de Francisco Adolfo de Varnhagen. Após a chegada dos europeus, em 1500, o Brasil utilizou mão de obra cativa em todos os ciclos econômicos que atravessou.

Da extração do pau-brasil à coleta de ouro e diamantes, já no século XIX, a população originária e, posteriormente, africanos escravizados a um oceano de distância embasaram a exploração portuguesa do Novo Mundo — e, enquanto país soberano, o Brasil se valeu da mesma relação servil nas atividades consideradas pilares da economia nacional.

No país que mais recebeu negros escravizados no mundo — e que ostenta a maior população negra fora da África —, Varnhagen mostrava ojeriza à população de origem africana e tinha como bastião a “europeização” do país. “Ele é um defensor da imigração europeia e do fim do tráfico negreiro, mas por razões distintas de José Bonifácio”, explica Semerene. “Varnhagen tinha ideias terríveis sobre os africanos e a escravidão; não era contra a escravidão propriamente dita, mas era contrário a que o povo brasileiro fosse constituído por negros ou por descendentes de negros: ele achava que isso seria terrível para o Brasil”, assegura o professor.

A obstinação por embranquecer a população brasileira era tamanha que Varnhagen se embrenhou cerrado adentro com primeiro objetivo não de achar uma nova capital para o então Império, mas de localizar uma região aprazível à colonização europeia. Da Vila Formoza de Imperatriz, hoje apenas Formosa, redigiu carta a 14 de julho de 1877 ao ministro da Agricultura, que financiou sua viagem, na qual apontava a região como mais indicada ao desembarque de colonos europeus, como parte do projeto de embranquecimento da população brasileira tocado pelo Império.

No documento, Varnhagen elenca regiões elevadas como a Serra da Canastra como um rincão potencialmente atraente dos europeus, mas aponta também uma outra localidade com clima propenso à imigração. “Na região que acabo de percorrer [o Planalto Central], há, porém, outra região não menos apropriada à colonização europeia (…) fazendo a um tempo dela partir águas para os três rios maiores do Brasil e da América do Sul, o Amazonas, o Prata e o São Francisco.”

 

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