Menu
60 Anos, 60 Histórias

Vargas dança com o fascismo

“O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova”
Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”

Olavo David Neto

19/02/2020 8h21

E ra um regime nacionalista. Antiliberal e anticomunista, pregava a supremacia do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, era paternalista e desenvolvimentista. Pavimentou as conquistas trabalhistas que até hoje são o cerne da legislação brasileira e que foram a principal característica do político Getúlio Vargas até sua morte, em 1954. Em 1932, foram aprovadas a criação da Carteira de Trabalho, a limitação da jornada, a proibição da mão de obra infantil e, numa medida controversa, a proibição do trabalho feminino. As limitações também atingiram em cheio a elite cafeicultora, que se inflou na Revolta Constitucionalista, em São Paulo — como visto na reportagem anterior deste especial.

Respaldado por uma Constituição — a de 1934, promulgada em 16 de julho —, o então governo provisório ganhou status de regime legal. Dentre as medidas da nova Carta Magna, a criação das Justiças Eleitoral e do Trabalho atendiam reivindicações dos grupos que ajudaram na ascensão getulista à Presidência, como os tenentistas e os sindicatos, que aumentaram a participação na vida política com Vargas. No ano de 1931, por exemplo, existiam 32 associações classicistas no Brasil, número que saltou a 83 no ano seguinte; em 1933, 141 entidades representativas estavam cadastradas no Brasil, índice reduzido a 111 em 1934, quando da aprovação da nova Constituição.

Em 1935, com o fechamento de muitas representações graças ao apoio a um movimento subversivo, apenas 73 sindicatos aparecem nos números do Atlas Histórico e Geográfico do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Deflagrada em novembro de 1935, inicialmente em Natal, no Rio Grande do Norte, depois no Recife, em Pernambuco, e no Rio de Janeiro, a Intentona Comunista foi um movimento subversivo liderado por Luís Carlos Prestes, que voltara da União Soviética com este objetivo. Na capital potiguar, os “vermelhos” depuseram o então interventor e se mantiveram por quatro dias no poder do estado, episódio que se configurou como a primeira experiência comunista na América.

Na viagem, fora designada a agente alemã Olga Benário para se passar como esposa do brasileiro. Ao longo do caminho, os dois se apaixonaram e o disfarce se confundiu com a vida real. A repressão veio a galope. Com tropas governistas saídas de João Pessoa, capital que se mantivera fiel a Getúlio, a União conseguiu sufocar a revolta no Nordeste. No Rio, a Escola Militar — foco da insurreição fluminense — foi bombardeada. O batismo de Praia Vermelha, nome adquirido logo depois, deve-se ao sangue derramado nas praias do bairro da Urca durante o período.

O “Retrato do Velho”: a foto de Getúlio era obrigatória em todas as escolas, hospitais e repartições públicas

Justificativas para a repressão

Com a Intentona Comunista, o regime varguista recrudesceu. Presos em março de 1936, Benário e Prestes nunca mais veriam um ao outro. A alemã, que além de comunista era judia, foi enviada por Getúlio como um “presente” a Adolf Hitler, o Führer nazista. O governo usaria do fantasma comunista para endurecer ainda mais a repressão. A Constituição que lhe dera legitimidade seria rasgada — assim como o sonho mudancista naquele final da década de 1930.

Vargas sabia dançar. Era clara a predileção do gaúcho a regimes totalitários, e a bem da verdade, tais formas de reger um país estavam em voga naquele período. É o espaço de tempo no qual Benito Mussolini se consolidou no poder italiano com a proposta do Fascio di Combattimento, uma espécie de manifesto fascista; e na Alemanha, Adolf Hitler e seu séquito macabro ascendera via voto popular para controlar o país e instaurar um dos regimes mais sanguinários da História. A Espanha acabara de passar pela Guerra Civil que concretou o poder de Francisco Franco, e, em Portugal, Antônio Salazar governava os lusos com mãos de ferro.

Neste contexto, a proposta de Vargas para o Brasil não era algo isolado. Algumas ações de comunicação inspiradas no totalitarismo europeu foram tomadas — e algumas delas são sentidas até hoje. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável pela boa imagem do governo junto à população, investiu pesado na indústria radiofônica, a menina dos olhos da comunicação na primeira metade do século XX.

Vem desta época um programa conhecido dos brasileiros nas noites das semanas: A Hora (posteriormente, Voz) do Brasil. Era a forma do governo espalhar os ideais que regiam o país.

Tempos de fake news: Plano Cohen

Utilizando-se deste poder de comunicação, um suposto plano para tornar o Brasil uma República Comunista foi anunciado na imprensa. Em 30 de setembro de 1937, o general Góes Monteiro foi à recém-inaugurada Rádio Nacional para informar a população sobre os projetos subversivos semelhantes à Intentona de dois anos antes. Ninguém questionou a (mentirosa) fala governamental, e em 1º de outubro, com autorização do Congresso Nacional, Vargas decretou o Estado de Guerra — dispositivo que dá plenos poderes ao Executivo. Em 10 de novembro, erguia-se sobre o país a ditadura do Estado Novo.

Mais uma vez, a tendência autoritária de Getúlio se assemelhava aos ditadores que instauraram um clima de guerra no Velho Mundo. Neste período, impõe-se a Constituição de 1937, inspirada na Carta Fascista da Polônia, que, além de aglomerar as funções do Estado nas mãos do Executivo, retirou das obrigações do governo a obrigatoriedade da construção de uma nova capital da República. Quanto à questão territorial, dada no artigo 3º, é clara a rejeição ao mudancismo: “É mantida a sua atual divisão política e territorial” do país”, diz a nova Constituição. E ponto final.

Apesar da inclinação fascista, Vargas, por razões comerciais e econômicas, manteve o Brasil neutro no campo ideológico mundial, fazendo-se disponível a quaisquer negociações, independentemente do lado. Assim vieram alguns agrados do “grande e bom amigo” alemão, como definiu Vargas. Graças à amizade, submarinos italianos e armamentos alemães entraram pelas fronteiras do país. A partir de 1942, porém, era necessário descer do muro. Com a Segunda Guerra Mundial já em curso, tornou-se imprescindível — para qualquer dos lados — a conquista de territórios periféricos à Europa.

Fronteiriço via mar com a África, o Brasil, então, mostrava-se como grande ponto estratégico no globo. Fazendo-se de difícil, Getúlio barganhou uma siderúrgica (a Companhia Siderúrgica Nacional, ou CSN) pela ocupação do litoral brasileiro. Em troca, ofereceu aos aliados um ponto estratégico para as manobras militares aéreas, a cidade de Natal, ponto mais próximo da África e da Europa pelo Oceano Atlântico. A cidade, antes um foco de insurreição comunista, acabou rebatizada de “Trampolim da Vitória”. As tropas norte-americanas instalaram bases na capital potiguar e, segundo especialistas da época, reduziram em três anos a duração do conflito.

Indo ao norte da África para invadir a Europa quase dominada pelos nazistas, os Aliados abriram um novo front de combate, dispersando tropas alemãs e permitindo a realização de manobras militares importantes para a vitória no conflito. Em tempos de guerra, não havia clima — nem interesse — em interiorizar a capital brasileira.

Novamente, uma guerra encerra um ciclo brasileiro

Eisenhower e Vargas na Base Aérea de Natal: interesses comerciais compuseram o “Trampolim da Vitória”

Com parâmetros semelhantes à Guerra do Paraguai, já abordada nesta série, a Segunda Guerra Mundial gerou sentimentos conflitantes no Brasil. Com forte campanha publicitária de apoio às tropas brasileiras que combateram, sobretudo, na Itália — onde tomaram Monte Castelo, episódio fundamental na queda italiana, rogava-se que os brasileiros estavam em território estrangeiro para combater ditadores totalitários.

Ao voltar à terra natal com a guerra vencida, em 1945, porém, os combatentes perceberam que combateram no Velho Mundo governos nos moldes do comandado por Vargas no Brasil, que prendera, a título de exemplo, de 1937 a 1945, 4.099 pessoas condenadas pelo Tribunal de Segurança Nacional e tidos como inimigos do Estado brasileiro. Um detento ilustre do Estado Novo foi o escritor Graciliano Ramos, que, atrás das grades, redigiu Memórias do Cárcere, que seria publicado apenas em 1953, e se tornaria um símbolo, além de um registro, da Era Vargas.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado