E ra um regime nacionalista. Antiliberal e anticomunista, pregava a supremacia do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, era paternalista e desenvolvimentista. Pavimentou as conquistas trabalhistas que até hoje são o cerne da legislação brasileira e que foram a principal característica do político Getúlio Vargas até sua morte, em 1954. Em 1932, foram aprovadas a criação da Carteira de Trabalho, a limitação da jornada, a proibição da mão de obra infantil e, numa medida controversa, a proibição do trabalho feminino. As limitações também atingiram em cheio a elite cafeicultora, que se inflou na Revolta Constitucionalista, em São Paulo — como visto na reportagem anterior deste especial.
Respaldado por uma Constituição — a de 1934, promulgada em 16 de julho —, o então governo provisório ganhou status de regime legal. Dentre as medidas da nova Carta Magna, a criação das Justiças Eleitoral e do Trabalho atendiam reivindicações dos grupos que ajudaram na ascensão getulista à Presidência, como os tenentistas e os sindicatos, que aumentaram a participação na vida política com Vargas. No ano de 1931, por exemplo, existiam 32 associações classicistas no Brasil, número que saltou a 83 no ano seguinte; em 1933, 141 entidades representativas estavam cadastradas no Brasil, índice reduzido a 111 em 1934, quando da aprovação da nova Constituição.
Em 1935, com o fechamento de muitas representações graças ao apoio a um movimento subversivo, apenas 73 sindicatos aparecem nos números do Atlas Histórico e Geográfico do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Deflagrada em novembro de 1935, inicialmente em Natal, no Rio Grande do Norte, depois no Recife, em Pernambuco, e no Rio de Janeiro, a Intentona Comunista foi um movimento subversivo liderado por Luís Carlos Prestes, que voltara da União Soviética com este objetivo. Na capital potiguar, os “vermelhos” depuseram o então interventor e se mantiveram por quatro dias no poder do estado, episódio que se configurou como a primeira experiência comunista na América.
Na viagem, fora designada a agente alemã Olga Benário para se passar como esposa do brasileiro. Ao longo do caminho, os dois se apaixonaram e o disfarce se confundiu com a vida real. A repressão veio a galope. Com tropas governistas saídas de João Pessoa, capital que se mantivera fiel a Getúlio, a União conseguiu sufocar a revolta no Nordeste. No Rio, a Escola Militar — foco da insurreição fluminense — foi bombardeada. O batismo de Praia Vermelha, nome adquirido logo depois, deve-se ao sangue derramado nas praias do bairro da Urca durante o período.
Justificativas para a repressão
Com a Intentona Comunista, o regime varguista recrudesceu. Presos em março de 1936, Benário e Prestes nunca mais veriam um ao outro. A alemã, que além de comunista era judia, foi enviada por Getúlio como um “presente” a Adolf Hitler, o Führer nazista. O governo usaria do fantasma comunista para endurecer ainda mais a repressão. A Constituição que lhe dera legitimidade seria rasgada — assim como o sonho mudancista naquele final da década de 1930.
Vargas sabia dançar. Era clara a predileção do gaúcho a regimes totalitários, e a bem da verdade, tais formas de reger um país estavam em voga naquele período. É o espaço de tempo no qual Benito Mussolini se consolidou no poder italiano com a proposta do Fascio di Combattimento, uma espécie de manifesto fascista; e na Alemanha, Adolf Hitler e seu séquito macabro ascendera via voto popular para controlar o país e instaurar um dos regimes mais sanguinários da História. A Espanha acabara de passar pela Guerra Civil que concretou o poder de Francisco Franco, e, em Portugal, Antônio Salazar governava os lusos com mãos de ferro.
Neste contexto, a proposta de Vargas para o Brasil não era algo isolado. Algumas ações de comunicação inspiradas no totalitarismo europeu foram tomadas — e algumas delas são sentidas até hoje. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável pela boa imagem do governo junto à população, investiu pesado na indústria radiofônica, a menina dos olhos da comunicação na primeira metade do século XX.
Vem desta época um programa conhecido dos brasileiros nas noites das semanas: A Hora (posteriormente, Voz) do Brasil. Era a forma do governo espalhar os ideais que regiam o país.
Tempos de fake news: Plano Cohen
Utilizando-se deste poder de comunicação, um suposto plano para tornar o Brasil uma República Comunista foi anunciado na imprensa. Em 30 de setembro de 1937, o general Góes Monteiro foi à recém-inaugurada Rádio Nacional para informar a população sobre os projetos subversivos semelhantes à Intentona de dois anos antes. Ninguém questionou a (mentirosa) fala governamental, e em 1º de outubro, com autorização do Congresso Nacional, Vargas decretou o Estado de Guerra — dispositivo que dá plenos poderes ao Executivo. Em 10 de novembro, erguia-se sobre o país a ditadura do Estado Novo.
Mais uma vez, a tendência autoritária de Getúlio se assemelhava aos ditadores que instauraram um clima de guerra no Velho Mundo. Neste período, impõe-se a Constituição de 1937, inspirada na Carta Fascista da Polônia, que, além de aglomerar as funções do Estado nas mãos do Executivo, retirou das obrigações do governo a obrigatoriedade da construção de uma nova capital da República. Quanto à questão territorial, dada no artigo 3º, é clara a rejeição ao mudancismo: “É mantida a sua atual divisão política e territorial” do país”, diz a nova Constituição. E ponto final.
Apesar da inclinação fascista, Vargas, por razões comerciais e econômicas, manteve o Brasil neutro no campo ideológico mundial, fazendo-se disponível a quaisquer negociações, independentemente do lado. Assim vieram alguns agrados do “grande e bom amigo” alemão, como definiu Vargas. Graças à amizade, submarinos italianos e armamentos alemães entraram pelas fronteiras do país. A partir de 1942, porém, era necessário descer do muro. Com a Segunda Guerra Mundial já em curso, tornou-se imprescindível — para qualquer dos lados — a conquista de territórios periféricos à Europa.
Fronteiriço via mar com a África, o Brasil, então, mostrava-se como grande ponto estratégico no globo. Fazendo-se de difícil, Getúlio barganhou uma siderúrgica (a Companhia Siderúrgica Nacional, ou CSN) pela ocupação do litoral brasileiro. Em troca, ofereceu aos aliados um ponto estratégico para as manobras militares aéreas, a cidade de Natal, ponto mais próximo da África e da Europa pelo Oceano Atlântico. A cidade, antes um foco de insurreição comunista, acabou rebatizada de “Trampolim da Vitória”. As tropas norte-americanas instalaram bases na capital potiguar e, segundo especialistas da época, reduziram em três anos a duração do conflito.
Indo ao norte da África para invadir a Europa quase dominada pelos nazistas, os Aliados abriram um novo front de combate, dispersando tropas alemãs e permitindo a realização de manobras militares importantes para a vitória no conflito. Em tempos de guerra, não havia clima — nem interesse — em interiorizar a capital brasileira.
Novamente, uma guerra encerra um ciclo brasileiroCom parâmetros semelhantes à Guerra do Paraguai, já abordada nesta série, a Segunda Guerra Mundial gerou sentimentos conflitantes no Brasil. Com forte campanha publicitária de apoio às tropas brasileiras que combateram, sobretudo, na Itália — onde tomaram Monte Castelo, episódio fundamental na queda italiana, rogava-se que os brasileiros estavam em território estrangeiro para combater ditadores totalitários. Ao voltar à terra natal com a guerra vencida, em 1945, porém, os combatentes perceberam que combateram no Velho Mundo governos nos moldes do comandado por Vargas no Brasil, que prendera, a título de exemplo, de 1937 a 1945, 4.099 pessoas condenadas pelo Tribunal de Segurança Nacional e tidos como inimigos do Estado brasileiro. Um detento ilustre do Estado Novo foi o escritor Graciliano Ramos, que, atrás das grades, redigiu Memórias do Cárcere, que seria publicado apenas em 1953, e se tornaria um símbolo, além de um registro, da Era Vargas. |