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60 Anos, 60 Histórias

Ó linda situação para uma nova cidade

“A topografia da maior parte da zona demarcada (…) se presta admiravelmente para a edificação de uma grande cidade, atendendo às condições (…) de salubridade” – Relatório da Missão Cruls

Olavo David Neto

12/02/2020 20h31

Conta a história que o português Duarte Coelho, ao avistar os contornos e relevos do mar, da praia e da montanha em frente de Recife, teria exclamado: “Ó linda situação para uma cidadela”. E eis aí a explicação para o nome da cidade de Olinda. No Planalto Central, o belga Luiz Cruls deparou-se com paisagem bem diferente. Mas, da mesma forma, ficou fascinado com a grandeza de lugares como, por exemplo, o gigantesco Salto do Itiquira. De forma bem mais científica que o mero palpite de Duarte Coelho, o relatório que Cruls escreve após cumprir a sua missão de reconhecimento no cerrado brasileiro poderia também ser resumido da mesma forma: o lugar que ele viu e demarcou lhe parecia uma “linda situação” para a criação não “de uma cidadela”, mas da futura capital do país.

Definidos os escalados, inclusive o capitão, a Comissão Exploradora da Nova Capital — ou simplesmente Missão Cruls — deixou o Rio de Janeiro em junho de 1892, subiu e desceu maciços, enfrentou as agruras de um cerrado ainda semi-inabitado para voltar à sede da República somente no primeiro mês do ano seguinte, a tempo de contribuir para a vitória republicana sobre a Segunda Revolta da Armada. A partir dos registros, a equipe comandada por Luiz Cruls passou a redigir um dos relatórios mais importantes da República, sobretudo no que diz respeito à mudança da capital.
Nele, os integrantes da comissão detalharam os estudos feitos em sete meses de pesquisas e investigações no Planalto Central brasileiro. Das rochas e intermitência das chuvas à vegetação e distância em relação ao nível do mar: tudo foi compilado em 365 páginas e publicado no final de 1894, quando da entrega dos estudos encomendados por Floriano Peixoto em respeito ao artigo 3º da Constituição de 1891.

Logo nas primeiras linhas, o astrônomo clama seguir “o espírito que animou o legislador quando inseriu na Constituição vigente o Art. 3º”. Quis, assim, mostrar que não viera ao Planalto Central a passeio. Sobretudo quando tratou de especificar que as formações planas e altas do Brasil ocorrem, quase como uma só, entre Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás, com rastros no atual Tocantins, na Bahia e no sul do país. “Eis, em traços largos, a configuração geral do planalto brasileiro que nos interessa diretamente”, concluiu o belga.

A partir daí, aponta que a única região que pode ser indicada como “central é aquela que se acha nas proximidades de Pirenópolis”, até mesmo pela posição vantajosa de abarcar cabeceiras dos três maiores rios da América do Sul: o Tocantins, afluente do Amazonas; o São Francisco; e o Paraná, afluente do Prata. É naquela região onde a equipe liderada pelo belga-brasileiro encontra as condições mais favoráveis para o alvorecer de uma nova cidade.

A proposta de Cruls ao governo republicano fora aceita, inclusive, no Congresso Nacional, fato que ele menciona no Relatório. “E o nosso modo de pensar parece encontrar confirmação na resolução (…), mandando agora proceder à fixação do local para a futura Capital na zona demarcada”, escreve o chefe da Comissão Exploradora. Tal ímpeto, porém, seria reduzido nos governos vindouros, assunto abordado mais à frente neste especial.

Demarcação

A Missão Cruls se dividiu em quatro para estabelecer o perímetro da futura capital federal. O franco-brasileiro Henrique Morize fincou bandeira no ponto SE (sudeste), em Unaí, a única ponta de Minas Gerais no quadrilátero; em Goiás, coube ao chefe da missão demarcar o ponto SW (sudoeste), hoje dentro dos limites de Abadiânia; e a Tasso Fragoso foi incubida a demarcação do vértice NW (noroeste), entre Goianésia e Padre Bernardo. Antônio Cavalcanti de Albuquerque, responsável pela aresta NE (nordeste), estabeleceu o limite na atual Formosa, então vila pela qual Cruls relatou bastante interesse no documento posteriormente redigido.

Antevisão do Brasil interiorizado

A Serra Geral do Paranã é uma muralha. Como parte da paisagem que desponta no norte goiano, ela se estende da divisa entre Goiás e Tocantins, deita-se para formar a Chapada dos Veadeiros — alcançando o ponto mais alto a 1.684 metros do nível do mar, quase na fronteira entre Alto Paraíso de Goiás e Cavalcante — e desce até Formosa, sempre com alturas superiores a mil metros. À direita da formação rochosa (ou seja, a leste), descortina-se uma depressão.

Ali, a tropa de Luiz Cruls identificou uma região propícia à assunção de indústrias. “A conformação geológica da zona apresenta particularidades dignas de maior interesse e que talvez possam ser aproveitadas para aplicações industriais”, descreve o autor do Relatório Cruls. “Referimo-nos às depressões bruscas consideráveis que se notam no Vão do Paranã”, completa.

Cerca de 600 metros separam verticalmente a Serra e o Vão do Paranã, que divide Minas Gerais, Goiás e Bahia, onde é limitado pelo Espigão Mestre. Na verdade, as linhas estaduais se desenharam em volta do “buraco”, que atua como barreira hidrográfica para as bacias do Tocantins-Araguaia e do São Francisco. Com área total de 17.388 km², o Vão do Paranã, hoje, é uma microrregião econômica de Goiás que engloba 12 municípios, mas sobrevive da pecuária extensiva. A bem da verdade, é uma alternativa também prevista no trabalho entregue ao governo brasileiro.

Em carta datada de 16 de novembro de 1894 — que o belga reproduz no Relatório — o botânico Auguste Glaziou, também presente na segunda Missão Cruls, alerta sobre o terreno da região indicada pelos exploradores para agricultura, mas abre caminho para a pecuária. “(…) Não é absolutamente fértil a totalidade do território, porém as localidades desprovidas dessa qualidade são cobertas de excelentes espécies de gramíneas”, aponta o francês, à época administrador do Parque das Matas do Distrito Federal. “A essas ervas espontâneas é que a região deve a superioridade do gado vaccum e de seu produto laticínio certamente igual aos melhores da Europa”, completa.

Lago sobre lago

Em tom ufanista, indica um futuro de peso à atividade rural. “Eis a razão porque a criação do gado, que não acarreta senão desembolsos mínimos, será indubitavelmente a indústria agrícola mais vantajosa do país”, diz Glaziou. Outra importante colaboração do botânico, na segunda missão enviada ao cerrado, versa sobre uma lâmina d’água no Planalto Central que se desfez pelo velho ditado “água mole em pedra dura…”.

Para ele, a cachoeira da região central do quadrilátero marcado pela primeira expedição “outrora era um lago devido à junção de diferentes cursos de água formando o rio Parnauá (sic); o excedente desse lago, atravessando uma depressão do chapadão, acabou (…) por abrir nesse ponto uma brecha funda, de paredes quase verticais pela qual se precipitam hoje todas as águas dessas alturas”, e, assim, “fechando essa brecha com uma obra de arte (…), forçosamente a água tomará o seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos”. Eis a garantia do que conhecemos hoje como Lago Paranoá.

Ponte de madeira no rio Descoberto, fotografada por Henrique Morize, integrante da expedição

Cachoeira gigante

Ao fim de sua participação no relatório, Cruls finaliza o texto recomendando a região explorada para receber a futura capital da República por conta de aspectos hídricos. “O sistema hidrográfico da zona demarcada é com efeito de uma riqueza tal que qualquer que seja o lugar escolhido para edificação da futura Capital, encontrar-se-há, sem grandes dificuldades, água suficiente para abastecê-la”, relata o astrônomo. A formação do terreno também o atrai. “A topografia da maior parte da zona demarcada (…) se presta admiravelmente para a edificação de uma grande cidade, atendendo às condições (…) de salubridade”, pondera.

Se Cruls deu a chance aos nativos de conhecerem a sua nação, um brasileiro proporcionou à Bélgica o conhecimento sobre seu filho mais sul-americano.

A cachoeira de Itiquira como vista pela Missão Cruls, pela lente de Morize

Pesquisador, jornalista e cineasta, Pedro Jorge de Castro esmiuçou o Relatório Cruls e, em 2003, refez o trajeto do astrônomo e sua equipe. Para isso, reproduziu o itinerário e a composição da Comissão Exploradora. Pelo trabalho, o cearense radicado em Brasília recebeu o título de Cavaleiro da Realeza Belga, que sequer conhecia Luiz Cruls.

Em Salto do Itiquira, onde Cruls esteve, Castro apresentou uma das maiores cachoeiras do país a um conterrâneo ilustre do astrônomo. “A maior cachoeira da Bélgica tem 14,5 metros de altura, e eu mesmo pude levar o prefeito da cidade onde o Cruls nasceu para ver a cachoeira do Itiquira, perto de Pirenópolis, que tem mais de 100 metros. Foi aí que ele, olhando para mim, disse ‘gigante pela própria natureza’”, relata o documentarista, lembrando o verso do Hino Nacional Brasileiro. Mais um belga apaixonado pelo território brasileiro.

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