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60 Anos, 60 Histórias

“No princípio, era o ermo…”

Os versos de Vinicius de Moraes resumem a saga da construção da cidade, que o JBr começa a contar agora, em 60 edições

Redação Jornal de Brasília

29/01/2020 8h32

A 60 anos,
A muralha desmoronou

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
redaçã[email protected]

Nos séculos 16 e 17, os primeiros colonizadores do Brasil chamavam a Serra do Mar de A Muralha. O quilométrico, imenso paredão de pedra coberto de vegetação e habitado por índios e animais ferozes, por cobras peçonhentas e cercado de mistérios compunha uma barreira natural que parecia destinada a evitar que os portugueses tidos como novos donos daquele lugar ultrapassassem os limites e as fronteiras estabelecidas com a Espanha no Tratado de Tordesilhas.

“Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer deste lugar um bom país” – Milton Nascimento em Notícias do Brasil

Se o tratado tivesse sido respeitado e se A Muralha de pedra tivesse metido mais medo, o Brasil teria menos da metade do seu tamanho atual. Seu limite ficaria bem no meio da praça da igreja de Olhos D´Água, o simpático vilarejo, distrito de Alexânia, a 100 quilômetros da Rodoviária, famoso pela sua popular Feira de Troca. É bem ali, dividindo no meio um pequeno botequim, o Bar Museu, em frente à igreja, que passa a linha do Tratado de Tordesilhas.

Desde sempre, portanto, pareceu haver entre os colonizadores desta terra a certeza de que a interiorização transformaria a face da nação. Algo que mais tarde Milton Nascimento resumiria numa canção:

“Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer deste lugar um bom país”.

No dia 21 de abril, se completarão 60 anos do ápice dessa saga. O momento em que a coragem e o espírito inovador de Juscelino Kubitschek definitivamente derrubaram A Muralha. E produziram uma imensa transformação no país.

Para o bem e para o mal, o Brasil de hoje é produto da capital que em 1960 JK cravou no meio do Planalto Central. As fronteiras conquistadas a partir da inauguração de Brasília fazem com que o agronegócio que se expande em Goiás ou no Mato Grosso tenha se tornado a principal economia brasileira. Hoje, é a música sertaneja consumida e produzida pelos homens que vivem além da Muralha a que mais faz sucesso. Os limites do Tratado de Tordesilhas foram solenemente ignorados.

No meio do bar, passa a linha de Tordesilhas

A partir de hoje até o dia 21 de abril, são as histórias que compõem essa saga que serão contadas pelo Jornal de Brasília. Uma saga que se inicia bem antes desta data. E que também se prolonga para além dela. Se Brasília transformou o Brasil, ao longo dos seus 60 anos de existência, ela também se transformou. Hoje, o Distrito Federal é composto por um variado complexo urbano. Cada uma de suas cidades adquiriu vida e características próprias. Aos 60 anos, essas cidades tornam Brasília uma senhora madura e também surpreendente.

São 60 anos contados em 60 histórias. A discussão sobre os problemas e razões que justificavam a troca da capital para o interior iniciam a série. Bem-vindos à cruz de Lúcio Costa. Bem-vindos ao avião que separa passado e futuro do Brasil.

No interior, a capital seria menos vulnerável e mais segura

“Estaria ela muito mais resguardada no centro, como está no corpo humano o coração, e não na fronteira – e fronteira marítima”. Este é um dos primeiros motivos concretos para que a mudança da capital do país saísse de um polo litorâneo e se fixasse no centro do país: a segurança. A fala cunhada pelo militar, engenheiro e historiador Francisco Adolfo de Varnhagen em 1877, Visconde de Porto Seguro, é baseada no histórico mundial de ataques e revoltas ocorridas em cidades-sede litorâneas de Estados ao redor do globo.

A primeira cidade escolhida para ser a sede do poder português no Brasil para administrar o regime de Governo Geral, em 1549, foi a também litorânea Salvador. Já no século XVIII, porém, Minas Gerais reluziu. As riquezas das Alterosas fizeram a coroa portuguesa apontar os holofotes para o Rio de Janeiro, onde o escoamento do ouro e dos diamantes à Europa seria mais fácil. A nova estratégia de comércio do minério impulsionaria a primeira troca da capital no Brasil, mas também traçaria uma rota de cobiça estrangeira até os portos fluminenses.

O professor Kelerson Semerene, doutor em História da Universidade de Brasília (UnB) contextualiza que a relevância econômica da cidade mais ao sul do litoral foi também um dos motivos para os primeiros pensamentos sobre a segunda troca da cidade-sede.

“Essa mudança se deu principalmente pela mudança do eixo econômico e de povoamento da colônia com a descoberta do ouro em Minas Gerais. O Rio de Janeiro passou a ser um porto muito importante, embora Salvador mantivesse uma importância enquanto sede do poder”, ponderou Kelerson. Pelas riquezas e “encantos mil” dos minerais escoados para a futura nova capital, a cidade maravilhosa passou a ser alvo de ataques.

 

Na mira dos franceses

O Rio de Janeiro bombardeado durante a Revolta Armada, episódio que derrubou o primeiro presidente da República.

Cerca de meio século antes de se tornar a capital colonial do Brasil, o Rio de Janeiro viveu momentos de insegurança e de cerco pelo estrangeiro, que sustentam a tese levantada por Varnhagen. Na manhã do dia 6 de agosto de 1710, cinco navios franceses carregando 1.200 homens foram vistos no horizonte marítimo da cidade litorânea, que se aproximavam para um ataque estratégico. Como reação, os populares se prepararam para um embate, que inicialmente fez com que a esquadra comandada pelo corsário Jean François Duclerc se dirigisse a sudoeste, como se rumasse a São Paulo.

Ainda na altura das fortalezas de Santa Cruz e São João, parte da frota foi atingida pelos fortes da cidade, começando a retaliação aos franceses. Na Restinga de Marambaia (RJ), os navios atracaram e os homens estrangeiros, com ajuda de tribos indígenas, acederam por meio de trilhas. O comandante da esquadra foi então capturado e mantido preso até o ano seguinte, quando a cidade foi alvo de outro ataque e Jean François Duclerc foi morto.

A resistência no primeiro ataque se deu por meio de estudantes jesuítas, lideranças comunitárias e negros escravizados, conforme mostra um poema anônimo de 1711: “Os estudantes provaram/ em como soldados eram/ e a conclusões defenderam/ das armas, que não curaram/(…) Enfim podem por escola/ e ensinar pontos de guerra/ os tigres filhos da terra/ e os leões filhos de Angola.” O estudante Bento do Amaral Coutinho liderou o combate contra os invasores enquanto as forças políticas da cidade pregavam postura defensiva na batalha contra os franceses.

“Mesmo antes de ser capital, o Rio acaba sendo objeto da cobiça de corsários, como Duguay-Trouin”, acrescentou o historiador Kelerson ao Jornal de Brasília. No episódio conhecido como a Batalha do Rio de Janeiro, em setembro de 1711, as embarcações voltaram. Desta vez, 5.624 homens foram alocados em 18 navios, que também carregavam 740 peças de artilharia, tudo sob o comando de René Duguay-Trouin.

Apesar de certa resistência, os franceses tomaram a cidade e se estabeleceram no Rio, de onde só sairiam mediante pagamento de um resgate. Estipulado em 600 mil cruzados, além de 100 caixas de açúcar e 200 bois, foi concedida a exigência da quantia e a esquadra francesa singrou novamente o Atlântico. Mesmo com um naufrágio às margens do continente europeu — que afundou dois dos principais navios da frota de Trouin — a expedição retornou a Paris com um lucro de 92% em relação ao valor investido.

Mesmo após a troca da capital, em 1763, a própria Marinha brasileira também mostrou, em três ocasiões, que o Rio de Janeiro estava exposto a ataques litorâneos. Em 1891, pouco depois de aprovada a Constituição Republicana, no ímpeto de preservar os poderes presidenciais, Deodoro da Fonseca declarou estado de sítio, rasgou a Carta Magna e dissolveu o Congresso. Em retaliação, oficiais da Marinha, também motivados pelas precárias condições de trabalho, cercaram a capital da República e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro. Com isso, o primeiro governo republicano veio a pique. A sucessão da Presidência deu vida à Segunda Revolta da Armada, que acabou contida com Floriano Peixoto no poder.

O marinheiro João Cândido, conhecido como o Almirante Negro: “A chibata alvita”

O “marechal de ferro” atuou fortemente na repressão ao motim, que durou dois anos, e estabeleceu, de uma vez por todas, o poder militar na égide da República. Já em 1910, João Cândido liderou a Revolta da Chibata, deflagrada contra os castigos físicos promovidos na Armada brasileira — herança de uma sociedade escravocrata. Os revoltosos tomaram dois encouraçados e voltaram os canhões contra o Palácio do Catete, e a cidade ficou sob a mira dos marinheiros durante cinco dias, numa prova de que uma capital à beira-mar estava desguarnecida e vulnerável a ataques — inclusive dos próprios brasileiros.

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