Olavo David Neto e Vítor Mendonça
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À época das primeiras obras, Brasília representava um vislumbre de esperança de uma pátria esquecida pelo Brasil. Milhões olhavam aquela empreitada em meio à flora nativa do cerrado com otimismo velado em relação ao que poderia representar aos menos atendidos pela nação, enquanto milhares partiam rumo ao coração geográfico brasileiro para dar forma à terceira capital do país. Vinham com a esperança de um novo país, voltado a si mesmo, atento às demandas da população excluída dos centros populacionais litorâneos.
Assim, as levas que desembarcavam no canteiro de obras que se formava no Planalto Central chegavam para edificar um sonho. Eram os “construtores de catedrais”, como classificou Juscelino Kubitschek em Por Que Construí Brasília. Entretanto, se eles punham as mãos na massa para erigir uma nova ordem social para o Brasil, quem cuidaria deles? Numa terra inóspita, tomada por bichos peçonhentos e enfermidades de toda a sorte, quais seriam as medidas para resguardar os candangos?
As primeiras providências, como visto na última reportagem, vieram com os primeiros trabalhadores. Por meio do Departamento de Saúde, comandado pelo médico e “pioneiro do antes” Ernesto Silva, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital firmou convênio com o Departamento de Endemias Rurais (DNERu), do Ministério da Saúde. Com isso, as lonas cedidas pelo Exército para abrigar os operários também receberam um posto de saúde pioneiro. De outra parceria, esta com o Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários (IAPI), surgiu o primeiro posto de saúde emergencial da construção em dezembro de 1956.
As enfermidades transmissíveis e de nível epidêmico foram combatidas, a priori, com uma medida simples. No início de 1957 foi instituído um documento de trabalho específico para os candangos. Quem aqui chegava deveria se dirigir a um dos balcões de trabalho, onde era registrado e, de lá, encaminhado à sede da Novacap. Submetiam-se, então, às vacinas antivariólica, antitífica-paratífica, Salk (no combate à paralisia infantil) e tríplice, disponibilizadas pelo DNERu. Às construtoras, era obrigatória a apresentação da Carteira de Saúde dos empregados.
Além dos galpões da Novacap, uma equipe móvel percorria os acampamentos privados e a Cidade Livre para realizar a vacinação em massa da população do então futuro Distrito Federal. Neste mesmo ano, foi inaugurado o primeiro aparelho definitivo de saúde no canteiro de obras. Tratava-se do Hospital do IAPI, posteriormente batizado Juscelino Kubitschek de Oliveira (HJKO). Ainda que tenha trocado a alcunha, o estabelecimento prestou atendimento médico, cirúrgico e odontológico a operários e funcionários com pessoal do instituto.
As pioneiras sociais
Idealizado e presidido por Sarah Kubitschek, a primeira-dama da República, construiu-se o Hospital Volante das Pioneiras Sociais. A iniciativa surgiu em Minas Gerais, ainda antes da Presidência de JK. Quando ele assumiu o cargo mais alto do país, dona Sarah transferiu o projeto para o Rio de Janeiro, então capital da nação, e expandiu as benfeitorias. Inaugurou escolas, creches, restaurantes comunitários e hospitais públicos destinados a pessoas em maior grau de vulnerabilidade.
Com o presidente a tocar tamanha epopeia, as Pioneiras Sociais não ficariam de fora. Desembarcaram no canteiro de obras em 26 de outubro 1957 e espalharam atenção à população mais necessitada, sendo, também, fundamentais na transferência das primeiras famílias a Taguatinga, cidade-satélite (hoje Região Administrativa) criada em 1958. No ano inaugural do novo núcleo urbano, o hospital volante era a única forma de atendimento médico na área ao sul das obras. Este assunto, contudo, veremos mais à frente.
Pulmões de ferro
As campanhas de saúde não se limitavam aos espaços destinados para tal. O Departamento de Endemias Rurais circulava pelos aglomerados populacionais e pelos estabelecimentos de comércio fiscalizando as instalações. Enfermidades como tuberculose e lepra – hoje hanseníase – entraram na mira das ações governamentais, bem como a Doença de Chagas. Transmitida pelo barbeiro, mosquito que habita nas paredes de casas de pau a pique, era problema frequente nas primeiras incursões candangas, sobretudo por seu vetor se proliferar em ambientes úmidos e quentes.
Os agentes do Comando Sanitário da Novacap, subordinado ao Departamento de Saúde, vistoriavam os núcleos habitacionais pioneiros. Conforme o relato de Ernesto Silva em O Militante da Esperança e a História de Brasília, o braço da empresa se tornou responsável por inspecionar “o comércio de gêneros alimentícios, restaurantes, bares e vendedores ambulantes”, além de fiscalizar área de grande interesse dos trabalhadores: os prostíbulos. “Visitava mensalmente o bordel do Núcleo Bandeirante e examinava as prostitutas, tomando as providências cabíveis”, conta Silva.
No início de 1958, a Novacap contou novamente com o Ministério da Saúde. Por meio do Serviço de Unidades Aéreas do órgão, foram mapeados os problemas respiratórios no Planalto Central. Além disso, acudiram para o estudo da atmosfera através de lâminas examinadas em Belo Horizonte. Graças à iniciativa, foi possível aferir as principais alergias que poderiam surgir da simples exposição ao ambiente da capital da República em construção. Certamente, a quantidade de poeira levantada por homens e máquinas castigava as narinas pioneiras.
Números da empreitada
De 1º de novembro a 31 de janeiro de 1959, o Serviço Nacional de Tuberculose, chegado logo após a aferição das doenças pulmonares na futura capital, fez radiografias torácicas de 18.315 pessoas – das quais 223 apresentaram “suspeitas de lesão pulmonar ativa” ; atendeu 31.159 habitantes; e aplicou a Bacillus Calmette-Guérin (BCG), vacina do combate à tuberculose, em 15.255 organismos. Os dados constam em relatório entregue pelo tisiologista Carlos Alberto Florentino à Novacap em 2 de fevereiro de 1959.
As ações concernentes à tuberculose foram auxiliadas pela construção do Hospital do Tamboril, na atual Vila Planalto, feito de madeira e que abarcava 20 leitos. Os casos intermediários eram tratados lá, mas os pacientes em estado mais grave retornavam às terras natais. Também em 1959, mas em setembro, o primeiro centro médico definitivo de Brasília era inaugurado.
Na 508 Sul, o Posto de Saúde da Avenida W3 passou a abrigar os serviços antes realizados em enfermarias improvisadas, de madeira. Três meses depois, o Departamento de Saúde da Novacap anunciava que mais de 100 mil pessoas se submeteram às vacinas oferecidas pela empresa. Era, de fato, algo notório.
Planejamento para o futuro“Com os parcos recursos de que dispúnhamos, protegemos, da melhor maneira possível, a população que acorreu ao Planalto e que chegava aqui aos milhares, alojando-se precariamente em barracões de madeira”, relata Ernesto Silva sobre as medidas de saúde pública do canteiro de obras. Os métodos paliativos estavam em voga, a todo vapor, mas seria necessário empreender um plano definitivo, preventivo para a nova capital. Conforme conta o médico, alguns defeitos da saúde nacional foram aferidos por ele quando da militância médica no Rio de Janeiro, então sede da República. À época, a descentralização dos cuidados de saúde da população se dava em função do “cada um por si” que reinava. Os Institutos de Pensão, como o IAPI, ofereciam serviços médicos esparsos. Por isso, era preciso combatê-los, descentralizá-los e barateá-los. A ideia de Ernesto é o embrião de um sistema de saúde único, que atenda universalmente “o rico e também o pobre”. O Brasil passou a ter o Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da Constituição de 1988. Segundo conta, o intuito era “dignificar o doente, oferecer-lhe (…) ampla e eficiente assistência médica”, bem como “romper os grilhões a que estão submetidos os médicos assalariados”. Tendo isso em mente, Ernesto se juntou ao doutor Henrique Bandeira de Mello para traçar o projeto médico-hospitalar do futuro centro do poder nacional. Enquanto as medidas mencionadas acima eram tomadas, Silva e Mello trabalhavam na elaboração de um sistema “completamente diferente de tudo quanto então houvesse”. Atentos à demanda de cada núcleo urbano – sem sobrecarregar determinadas instituições e sem, ao mesmo tempo, exigir grandes edificações -, elaboraram projetos de hospitais que atendessem entre 45 mil e 50 mil pessoas em cada “zona distrital”. O princípio norteador se dava na ideia de atender ao usuário do sistema em sua própria vizinhança, sem necessidades de deslocamentos demorados. A assistência médica seria ofertada por um hospital de base, hospitais distritais, unidades satélites (centros e postos de saúde) e colônia hospitalar. A base da saúde candangaO Hospital de Base, agora em maiúsculo, concentraria todas as especialidades e equipamentos de alta precisão, e se tornaria, assim, a referência – a base – de todo o sistema de saúde da capital. Era a “nave-mãe” da assistência médica de Brasília, e assim se mantém até hoje. Inaugurado em 12 de setembro de 1960, após a inauguração, portanto, teve funcionamento limitado ao térreo – e à função de posto emergencial – durante o ano de 1959. Outro ponto revolucionário do plano de Ernesto para a saúde candanga foram os Conselhos Comunitários de Saúde, que pretendiam “chamar o povo a colaborar na solução dos seus próprios problemas”. Por meio do Decreto 47.952, de 21 de março de 1960, veio à vida o Conselho de Saúde de Brasília. Já em abril, 17 dias antes da inauguração da cidade, JK recebeu uma mensagem do doutor Antônio Jorge de Queiroz Jucá, presidente do IAPI, um dos entes que primeiro cuidaram dos candangos. Entusiasmado, o mandatário considerou o plano de Ernesto a “primeira tentativa de assistência médica racional, e socializada experimentada no Brasil, não imposta ao médico, mas ditada por ele”, celebrou Jucá. |