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60 Anos, 60 Histórias

Neste quadradinho cabe o Brasil inteiro

Na data do aniversário, chega ao fim a série 60 Anos 60 Histórias, mostrando a capital hoje, amadurecida, com sua trajetória, características e contrastes econômicos e sociais

Redação Jornal de Brasília

21/04/2020 6h24

Atualizada 28/04/2020 17h56

60 Anos esta noite

“Brasília periferia parte dois
Satisfação em escrever
Vários dias varias noites só não posso dizer
Esta é a última canção que eu faço pra você”

Gog em “Brasília Periferia Parte Dois”

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

O dia 22 de abril de 1960, marca dos 460 anos da chegada portuguesa ao litoral brasileiro, também representou um Brasil diferente. Após a badalada construção e uma inauguração de gala, Brasília entrava, dentro do possível, numa rotina voltada às maiores decisões do país. É certo que o Legislativo conseguiu adiar sua transferência para maio, mas, a partir daquele momento, encerrou-se um mito e teve lugar a vida cotidiana do que se tornava o abrigo das maiores personalidades da República. E que cotidiano conturbado.

No ano seguinte à inauguração, Brasília testemunhou Jânio Quadros renunciar à Presidência numa manobra problemática e infrutífera. A vacância do cargo ressuscitou sonhos antigos antidemocráticos das Forças Armadas. Parceiro político do construtor, o vice-presidente João Goulart viu ameaçado o mandato que lhe era direito cumprir. Com muitas idas e vindas, Jango tomou posse como presidente num regime parlamentarista, no qual o chefe do Executivo era quase um objeto de decoração.

Sem sucesso nos quase dois anos de experiência, o parlamentarismo foi posto à vontade popular, que demonstrou, em janeiro de 1963, o desejo de ser guiado por um mandatário plenipotenciário. Com a volta de Jango ao presidencialismo, o Palácio do Planalto retomou as rédeas do país, reuniu ministros e se voltou às reformas de base, sonho antigo do presidente do país. As medidas relacionadas a terras e taxação de riquezas mexeram com os brios conservadores, que instaram o Exército, em nome da democracia – supostamente ameaçada por um regime supostamente comunista -, a derrubar o Estado Democrático de Direito.

Em 1º de abril de 1964 teve início a mais longa ditadura da história brasileira. O mote era afastar o perigo vermelho que, segundo eles, vivia sob o governo de um estancieiro, dono de grandes propriedades rurais. O próprio Juscelino Kubitschek, mesmo depois de cassado pelo regime, refere-se ao episódio como “revolução”, em Por Que Construí Brasília. Desfazendo-se da promessa, o Exército se perpetuou no poder, recrudesceu a repressão, fechou o Congresso Nacional, calou a imprensa, torturou opositores ideológicos e, com base no messianismo militar, implodiu a economia e a indústria brasileiras.

Apropriada pelo Exército

Um dos presos políticos mais torturados pelos militares, o jornalista e pesquisador Jarbas Silva Marques faz questão de ressaltar uma “justiça histórica” para o papel verde-oliva no projeto mudancista. Desde as missões de Luís Cruls, tenente-coronel da Força Armada, às especificações técnicas do general Polli Coelho e sua comissão, os militares sempre deram respaldo à construção da nova capital do país. Principalmente, como mostram documentos reservados e secretos de 1947, na relação da defesa nacional, tendo o Planalto Central capilaridade para onde o vento apontar.

E isso, de fato, auxiliou na manutenção dos governos autoritários. De cima das Águas Emendadas, os generais-presidentes dizimaram a luta armada subversiva, tendo facilidade territorial para encaminhar tropas ao combate no Araguaia, onde a maior guerrilha de resistência aos militares foi aniquilada. Ampla e sem “pontos cegos”, Brasília se mostrou como capital perfeita para aquartelamento dos interesses militares, sendo o centro de comando ideal para controlar o Brasil de Norte a Sul.

O espírito de JK sobre a cidade

Foto: Rodrigo Rocha especial para o Jornal de Brasília

Inimigo do Estado, perseguido pelas forças que deveriam proteger o país, Juscelino Kubitschek teve os direito políticos suprimidos e chegou a ser detido pelos militares. Em 1972, percorreu anonimamente as ruas da cidade que ergueu junto aos candangos. Emocionado, chorou escondido sob o chapéu que lhe cobria a cabeça e atacou de profeta para o futuro da Catedral Metropolitana, que até aquele momento nunca celebrara missas sem espaço nos bancos. “Estará cheia no meu velório”, vaticinou.

Em 1976, sua antevisão concretizou-se. Morto num controverso acidente viário na rodovia Dutra, que liga o Rio de Janeiro a São Paulo, JK despertou um sentimento antirregime na população, que aos montes pranteou sua morte na principal igreja de Brasília. Numa relação de antagonismo, o Exército entrou na mira da sociedade civil, que passou a ver responsabilidades da Força Armada na morte do popular ex-presidente. No velório, cabos e sentinelas designados para a segurança do evento foram enxotados por populares, e há relatos de militares que tiveram de despir as fardas graças à pressão dos órfãos de Kubitschek.

Vítima de uma impiedosa caça às bruxas midiáticas, com processos por suposta corrupção nascidos apenas para as manchetes dos censurados jornais, o Juscelino da morte em nada se parecia com o popular tocador de obras que construiu a capital. Num ponto de virada histórico, passou a mártir pela redemocratização do país e, a partir do enterro do “presidente sorriso”, a campanha pelo fim da Ditadura Militar teve maior adesão das camadas médias da sociedade brasileira. Tal qual Getúlio, JK frustrou planos militares e acelerou o processo de reabertura política do Brasil, concretizada em 1985.

Já em 1988, de um grande acordo nacional erigiu-se a sétima Constituição do país em 166 anos de soberania política. Aos 32 de idade, já é a segunda mais longeva da história nacional, atrás apenas da imperial, decretada em 1824 e derrubada apenas em 1889. O Brasil, que tem parca experiência democrática, vive atualmente o maior período de estabilidade de sua vida. Brasília, então, nem se fala.

Com apenas quatro anos assistiu ao escurecer de um governo ditatorial, e apenas aos 25 viu-se novamente sede de um país democrático.

Democracia nada simples

Primeiro presidente eleito após o chumbo militar, Fernando Collor renunciou em 1992 em meio a um processo de impeachment. Após os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a sucessora petista Dilma Rousseff também foi derrubada por um processo deflagrado no Congresso Nacional. Michel Temer (MDB) assumiu o Palácio do Planalto para se tornar o oitavo vice-presidente brasileiro a ascender à chefia do Executivo.

O Brasil cabe no quadrado

Foto: Rodrigo Rocha especial para o Jornal de Brasília

Hoje sexagenária, Brasília – bem como o novo Distrito Federal – mostra-se uma cidade independente do resto do país. Sua primeira cidade-satélite oficializada, Taguatinga, atualmente gere-se sem maiores influências do Plano Piloto, sendo pólo industrial e, ao lado de Ceilândia, um dos maiores centros culturais do Planalto Central. Nas 31 RAs, o Brasil encontra a si mesmo, como desejou cada um dos mudancistas. O problema, vale dizer, é que nem sempre esse autorretrato é positivo.

Aos 60 anos, além de graves problemas de memória, a cidade construída para impulsionar o desenvolvimento nacional agora se mostra como um retrato fidedigno das contradições de um país-continente. Em poucos quilômetros é possível observar as maiores riquezas que o fértil solo brasileiro pode proporcionar em contraste com as piores mazelas que o fraco Estado nacional permite – e até incentiva. As RAs, que hoje se triplicam com relação ao número projetado por Lúcio Costa, abriga em si um pouco de cada canto do território, inclusive as piores características de uma nação surgida da exploração latifundiária e escravocrata.

Segundo o Mapa das Desigualdades de 2019, elaborado pelo Movimento Minha Brasília com dados de 2018, Varjão, Fercal, Recanto das Emas, Santa Maria, Planaltina e Estrutural têm até 80% das respectivas populações compostas por negros. E são essas regiões que abrigam os trabalhadores com piores remunerações do Distrito Federal, com médias de dois a cinco salários mínimos. No Itapoã, conforme a mesma publicação, apenas 29% dos domicílios se situam nas proximidades de jardins e áreas verdes, enquanto 46% estão próximos a quadras de esportes e quase 21% se situam em ruas arborizadas.

O Plano Piloto de Lúcio Costa, por sua vez, tem aproximadamente 89% das casas às margens de parques, 81% das residências com quadras de esportes a poucos metros de distância, e 95% rodeada por árvores nas vias de acesso. Enquanto 89% da população do avião de concreto trabalha na própria Região Administrativa (RA), somente 21% dos moradores do Itapoã não precisam enfrentar o trânsito cotidiano que já assola o Distrito Federal.

A meio caminho entre duas das RAs mais ricas do DF – Plano Piloto e Águas Claras -, a Cidade Estrutural serve às duas regiões apenas como cessão da mão de obra barata necessária ao conforto das classes mais altas. Lá, cerca de 84% das famílias têm renda inferior a dois salários mínimos – num teto de R$ 2.090 para os quatro quintos dos núcleos familiares do local. Na RA XXV, algo em torno de 57% dos moradores dependem do precário transporte público candango para se deslocar aos locais de serviço – concentrados nas Asas Sul e Norte, onde apenas 16,4% vão e vêm do trabalho por meio de ônibus e metrô.

Construída para a integração nacional, Brasília – de onde partem diversas rodovias cruciais para ligação das regiões brasileiras – nega pavimentação à própria classe operária. Com 100% das ruas pavimentadas, um morador do Plano Piloto sequer mensura a dificuldade de 46% das residências da Estrutural que não possuem asfaltos nas vias de acessos. A Capital da Esperança ainda é uma via de escape ao subdesenvolvimento, mas há ainda muitos buracos nos caminhos para o futuro do Brasil, e nessa viagem de 60 anos o país continua derrapando.

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