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60 Anos, 60 Histórias

História de Tiradentes se mistura com a de Brasília

No especial 60 Anos, os inconfidentes e a interiorização da capital

Redação Jornal de Brasília

03/02/2020 8h20

Tiradentes, por aqui passou o homem…

“Por aqui passava um homem
– e como o povo se ria! –
“Liberdade ainda que tarde”
nos prometia”
Cecília Meirelles em O Romanceiro da Inconfidência

 

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

A história é sempre montada, obviamente, depois de ocorridos os fatos. Em alguns casos, muito depois. Elevado à máxima potência de símbolo da liberdade durante a era republicana, pelos sonhos de libertação e pela proposição de uma República ainda nas primeiras décadas do século XVIII, Joaquim José da Silva Xavier tornou-se um dos primeiros mártires do pós-golpe militar de 1889.

Apontado como líder do episódio conhecido como Inconfidência – ou Conjuração – Mineira, Tiradentes, por quase 100 anos, fora considerado inimigo do Estado brasileiro.

Para o professor Kelerson Semerene, é natural que a imagem do alferes tenha sofrido com o limbo durante este período. “O movimento do qual ele foi a figura mais expressiva fez-se contra a casa imperial que, no fim das contas, liderou a independência do Brasil”, explica o membro do departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). O historiador também aponta que a condenação do alferes foi referendada por uma familiar dos imperadores que governaram o país após 1822. “Quem assinou a sentença de morte de Tiradentes foi a avó de D. Pedro I, e bisavó de D. Pedro II”. No caso, D. Maria I, rainha de Portugal, em 1792.

Título: RETRATO DE JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER – TIRADENTES.Autor: SILVA, OSCAR PEREIRA DA.Data: 1922.Técnica: ÓLEO SOBRE TELA.Dimensões (a_cm, a_sm X l_cm, l_sm): 160-154-75-71.Coleção:FUNDO MUSEU PAULISTA – FMP.Foto: José Rosael-Hélio Nobre-Museu Paulista da USP.Acervo: Museu Paulista da USPDomínio Público

Com a República, a figura de Tiradentes foi resgatada e ele eleito como grande herói nacional. Natural que, da mesma forma, as ideias que ele e os demais inconfidentes propagavam também fossem resgatadas. E é aí que o alferes, personagem dos versos de Cecília Meirelles em “O Romanceiro da Inconfidência”, entra na história de Brasília. A interiorização da capital do país estava entre os temas que os inconfidentes conjuravam. Como se verá, o interior imaginado pela Conjuração não era tão no centro do Brasil. Mas Tiradentes e os demais revoltosos estão entre os primeiros “mudancistas”, ou seja, entre os pioneiros a pregar a transferência da capital do país do litoral para o interior.

A febre do ouro toma conta do Brasil colonial

Com a descoberta de ouro no interior de Minas, no final do século XVII, um grande êxodo produziu-se, deixando o continente africano e o litoral brasileiro em direção às terras das Alterosas. A partir de 1700, o eixo econômico da colônia foi deslocado do litoral nordestino para o Sudeste, e as novas fontes de riquezas para a coroa portuguesa influenciaram o tráfico negreiro transatlântico.

De acordo com estimativas do slavevoyages.org, entre 1501 e 1700, cerca de 1,2 milhão de africanos escravizados foram transportados para o Brasil. No século seguinte, após o início da exploração aurífera em território mineiro, quase 2 milhões de cativos, majoritariamente vindos da região de Luanda, em Angola, foram importados pelos senhores brasileiros.

De acordo com o jornalista e pesquisador Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão (2019), os africanos desembarcados no Brasil “trabalharam nas lavouras de açúcar e café e nas minas de ouro e diamantes, além de executarem uma infinidade de ocupações domésticas e urbanas”. Tamanho êxodo deixou marcas na população mineira.

Conforme estudos do Atlas Histórico do Brasil, produzido pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a população de Minas Gerais em 1789, ano da repressão à Inconfidência Mineira, era de 363 mil pessoas. Destes, cerca de 189 mil (ou 52,1%) eram livres ou forros, enquanto 174 mil (ou 47,9%) eram cativos.

O quinto dos infernos

Com tamanha ebulição econômica, pareceria claro que as autoridades coloniais pegariam um quinhão das riquezas que sangravam do território mineiro. Estabelecido desde o início da ocupação brasileira, o Quinto, imposto de 20% sobre receitas advindas de metais preciosos, passou a ser cobrado dos extratores que exploraram o solo de Minas Gerais. O percentual do governo português era retirado direto das casas de fundição, onde derretia-se o ouro para posterior comércio. A cobrança gerava insatisfação na população que se sustentava à base do metal — praticamente toda a província de Minas Gerais —, que também burlava a fiscalização imperial de formas, no mínimo, criativas.

Data desta época a origem da expressão “santo do pau oco”. Hoje utilizada para descrever uma pessoa cínica, dissimulada, a frase foi cunhada a partir das imagens sacras talhadas em madeira oca e preenchidas com porções de ouro, que seriam contrabandeadas à revelia do olhar da metrópole.

Também empregado nesta época, o dito popular “Quinto dos infernos” é outro que venceu o tempo e ainda está presente no colóquio popular. Era uma referência ao imposto, associada também à Divina Comédia, de Dante Alighieri. Ao descrever o inferno, Dante disse que ele teria nove círculos, onde ficavam dispostos os pecadores. O quinto deles seria destinado aos possuídos pela ira. E o imposto, de fato, provocava grande raiva nos brasileiros, como é até hoje, aliás.

Decadência e revolta

Apesar do apogeu do ouro, vivido no final da década de 1730, a extração do mineral entra em declínio nas Minas Gerais a partir de 1739, tendência que se manteria até o final do século. Naquele ano, cerca de dez toneladas do minério foram extraídas do solo brasileiro, grande parte de Minas Gerais, mas também com colaboração de Goiás e Mato Grosso. Cerca de 50 anos mais tarde, o total da produção aurífera brasileira, somadas as três províncias, não chegaria à metade daquele quantitativo, e a escassez não sensibilizou a coroa portuguesa no tocante ao recolhimento dos impostos.

Com cada vez menos ouro chegando a Lisboa, em parte pelo declínio da atividade econômica, mas também graças ao contrabando, Portugal resolveu apertar o laço dos exploradores brasileiros. No anseio de cobrar os Quintos que porventura houvessem sido sonegados, a metrópole impôs mais uma cobrança sobre a extração do minério, a chamada Derrama. A partir de então, independentemente da quantia coletada das minas, 1.500 quilos da riqueza deveriam chegar anualmente à Europa. Já enraizada, a revolta da população eclode em um dos maiores motins coloniais do Brasil — a Inconfidência.

No fim das contas, porém, a Conjuração Mineira não foi realizada. Os revoltosos — membros de diversas camadas sociais, como desembargadores, religiosos, e até o poeta Tomás Antônio Gonzaga — ainda planejavam os movimentos em reuniões a portas fechadas. A coroa portuguesa contou com a traição de Joaquim Silvério dos Reis, que entregou os organizadores e os objetivos da conspiração. Tiradentes, que se preparava para uma viagem à Europa a fim de difundir o movimento junto a alguns baluartes que inspiraram a revolta, como os iluministas franceses, foi preso no Rio de Janeiro em março de 1789.

Apesar do tom nacionalista atribuído ao movimento, não é correto pensar que os inconfidentes planejavam um desligamento completo do Brasil em relação a Portugal. “A Inconfidência não almejava a Independência de todo o território brasileiro, porque tampouco havia essa percepção de unidade”, afirma Semerene.

Um novo Estado, uma nova capital

Nos “Autos da Devassa”, espécie de inquérito da época, que reunia testemunhos de acusação e defesa, o inconfidente José Resende Costa declarou que tinha intenções de ir a Coimbra, em Portugal, para completar os estudos. Foi dissuadido por um revoltoso não identificado. “Passados tempos, encontrando-se ele, testemunha, com o dito Vigário, lhe perguntou este se ainda tinha tenção de ir para Coimbra, e dizendo-lhe que sim, o dito Vigário principiou a dissuadi-lo daquele intento”, diz o relato. “[O Vigário] lhe contou debaixo de muito segredo (…) que não tinha necessidade de ir a Portugal para frequentar os estudos, porquanto estava próximo a fazer-se nestas Minas um levante para se erigirem em República, e que havia de ter nela sete Parlamentos, sendo a Capital São João del Rei”.

Tido como líder do movimento, Tiradentes é, pois, visto como um dos primeiros “mudancistas” brasileiros, mais ainda pela exaltação da imagem do revoltoso mineiro sob a égide da República. Como exemplo, o alferes Joaquim Xavier, mesmo preso e condenado à forca, tinha cabelos e queixo constantemente raspados. “Sua figura vai sendo reabilitada aos poucos, e é sobretudo na República que há um processo de reconstrução dos símbolos. A bandeira é modificada e também os heróis, e o principal deles é o próprio Tiradentes”, aponta o professor Kelerson. Assim, passamos a tê-lo como o temos até hoje: cabelos e barbas negros, longos, com traços do Cristo desenhado por mãos europeias para olhos europeus, fixando na história mais uma imagem de um salvador heroico.

 

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