Tiradentes, por aqui passou o homem…
“Por aqui passava um homem
– e como o povo se ria! –
“Liberdade ainda que tarde”
nos prometia”
Cecília Meirelles em O Romanceiro da Inconfidência
Olavo David Neto e Vítor Mendonça
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A história é sempre montada, obviamente, depois de ocorridos os fatos. Em alguns casos, muito depois. Elevado à máxima potência de símbolo da liberdade durante a era republicana, pelos sonhos de libertação e pela proposição de uma República ainda nas primeiras décadas do século XVIII, Joaquim José da Silva Xavier tornou-se um dos primeiros mártires do pós-golpe militar de 1889.
Apontado como líder do episódio conhecido como Inconfidência – ou Conjuração – Mineira, Tiradentes, por quase 100 anos, fora considerado inimigo do Estado brasileiro.
Para o professor Kelerson Semerene, é natural que a imagem do alferes tenha sofrido com o limbo durante este período. “O movimento do qual ele foi a figura mais expressiva fez-se contra a casa imperial que, no fim das contas, liderou a independência do Brasil”, explica o membro do departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). O historiador também aponta que a condenação do alferes foi referendada por uma familiar dos imperadores que governaram o país após 1822. “Quem assinou a sentença de morte de Tiradentes foi a avó de D. Pedro I, e bisavó de D. Pedro II”. No caso, D. Maria I, rainha de Portugal, em 1792.
Com a República, a figura de Tiradentes foi resgatada e ele eleito como grande herói nacional. Natural que, da mesma forma, as ideias que ele e os demais inconfidentes propagavam também fossem resgatadas. E é aí que o alferes, personagem dos versos de Cecília Meirelles em “O Romanceiro da Inconfidência”, entra na história de Brasília. A interiorização da capital do país estava entre os temas que os inconfidentes conjuravam. Como se verá, o interior imaginado pela Conjuração não era tão no centro do Brasil. Mas Tiradentes e os demais revoltosos estão entre os primeiros “mudancistas”, ou seja, entre os pioneiros a pregar a transferência da capital do país do litoral para o interior.
A febre do ouro toma conta do Brasil colonial
Com a descoberta de ouro no interior de Minas, no final do século XVII, um grande êxodo produziu-se, deixando o continente africano e o litoral brasileiro em direção às terras das Alterosas. A partir de 1700, o eixo econômico da colônia foi deslocado do litoral nordestino para o Sudeste, e as novas fontes de riquezas para a coroa portuguesa influenciaram o tráfico negreiro transatlântico.
De acordo com estimativas do slavevoyages.org, entre 1501 e 1700, cerca de 1,2 milhão de africanos escravizados foram transportados para o Brasil. No século seguinte, após o início da exploração aurífera em território mineiro, quase 2 milhões de cativos, majoritariamente vindos da região de Luanda, em Angola, foram importados pelos senhores brasileiros.
De acordo com o jornalista e pesquisador Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão (2019), os africanos desembarcados no Brasil “trabalharam nas lavouras de açúcar e café e nas minas de ouro e diamantes, além de executarem uma infinidade de ocupações domésticas e urbanas”. Tamanho êxodo deixou marcas na população mineira.
Conforme estudos do Atlas Histórico do Brasil, produzido pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a população de Minas Gerais em 1789, ano da repressão à Inconfidência Mineira, era de 363 mil pessoas. Destes, cerca de 189 mil (ou 52,1%) eram livres ou forros, enquanto 174 mil (ou 47,9%) eram cativos.
O quinto dos infernos
Com tamanha ebulição econômica, pareceria claro que as autoridades coloniais pegariam um quinhão das riquezas que sangravam do território mineiro. Estabelecido desde o início da ocupação brasileira, o Quinto, imposto de 20% sobre receitas advindas de metais preciosos, passou a ser cobrado dos extratores que exploraram o solo de Minas Gerais. O percentual do governo português era retirado direto das casas de fundição, onde derretia-se o ouro para posterior comércio. A cobrança gerava insatisfação na população que se sustentava à base do metal — praticamente toda a província de Minas Gerais —, que também burlava a fiscalização imperial de formas, no mínimo, criativas.
Data desta época a origem da expressão “santo do pau oco”. Hoje utilizada para descrever uma pessoa cínica, dissimulada, a frase foi cunhada a partir das imagens sacras talhadas em madeira oca e preenchidas com porções de ouro, que seriam contrabandeadas à revelia do olhar da metrópole.
Também empregado nesta época, o dito popular “Quinto dos infernos” é outro que venceu o tempo e ainda está presente no colóquio popular. Era uma referência ao imposto, associada também à Divina Comédia, de Dante Alighieri. Ao descrever o inferno, Dante disse que ele teria nove círculos, onde ficavam dispostos os pecadores. O quinto deles seria destinado aos possuídos pela ira. E o imposto, de fato, provocava grande raiva nos brasileiros, como é até hoje, aliás.
Decadência e revolta
Apesar do apogeu do ouro, vivido no final da década de 1730, a extração do mineral entra em declínio nas Minas Gerais a partir de 1739, tendência que se manteria até o final do século. Naquele ano, cerca de dez toneladas do minério foram extraídas do solo brasileiro, grande parte de Minas Gerais, mas também com colaboração de Goiás e Mato Grosso. Cerca de 50 anos mais tarde, o total da produção aurífera brasileira, somadas as três províncias, não chegaria à metade daquele quantitativo, e a escassez não sensibilizou a coroa portuguesa no tocante ao recolhimento dos impostos.
Com cada vez menos ouro chegando a Lisboa, em parte pelo declínio da atividade econômica, mas também graças ao contrabando, Portugal resolveu apertar o laço dos exploradores brasileiros. No anseio de cobrar os Quintos que porventura houvessem sido sonegados, a metrópole impôs mais uma cobrança sobre a extração do minério, a chamada Derrama. A partir de então, independentemente da quantia coletada das minas, 1.500 quilos da riqueza deveriam chegar anualmente à Europa. Já enraizada, a revolta da população eclode em um dos maiores motins coloniais do Brasil — a Inconfidência.
No fim das contas, porém, a Conjuração Mineira não foi realizada. Os revoltosos — membros de diversas camadas sociais, como desembargadores, religiosos, e até o poeta Tomás Antônio Gonzaga — ainda planejavam os movimentos em reuniões a portas fechadas. A coroa portuguesa contou com a traição de Joaquim Silvério dos Reis, que entregou os organizadores e os objetivos da conspiração. Tiradentes, que se preparava para uma viagem à Europa a fim de difundir o movimento junto a alguns baluartes que inspiraram a revolta, como os iluministas franceses, foi preso no Rio de Janeiro em março de 1789.
Apesar do tom nacionalista atribuído ao movimento, não é correto pensar que os inconfidentes planejavam um desligamento completo do Brasil em relação a Portugal. “A Inconfidência não almejava a Independência de todo o território brasileiro, porque tampouco havia essa percepção de unidade”, afirma Semerene.
Um novo Estado, uma nova capitalNos “Autos da Devassa”, espécie de inquérito da época, que reunia testemunhos de acusação e defesa, o inconfidente José Resende Costa declarou que tinha intenções de ir a Coimbra, em Portugal, para completar os estudos. Foi dissuadido por um revoltoso não identificado. “Passados tempos, encontrando-se ele, testemunha, com o dito Vigário, lhe perguntou este se ainda tinha tenção de ir para Coimbra, e dizendo-lhe que sim, o dito Vigário principiou a dissuadi-lo daquele intento”, diz o relato. “[O Vigário] lhe contou debaixo de muito segredo (…) que não tinha necessidade de ir a Portugal para frequentar os estudos, porquanto estava próximo a fazer-se nestas Minas um levante para se erigirem em República, e que havia de ter nela sete Parlamentos, sendo a Capital São João del Rei”. Tido como líder do movimento, Tiradentes é, pois, visto como um dos primeiros “mudancistas” brasileiros, mais ainda pela exaltação da imagem do revoltoso mineiro sob a égide da República. Como exemplo, o alferes Joaquim Xavier, mesmo preso e condenado à forca, tinha cabelos e queixo constantemente raspados. “Sua figura vai sendo reabilitada aos poucos, e é sobretudo na República que há um processo de reconstrução dos símbolos. A bandeira é modificada e também os heróis, e o principal deles é o próprio Tiradentes”, aponta o professor Kelerson. Assim, passamos a tê-lo como o temos até hoje: cabelos e barbas negros, longos, com traços do Cristo desenhado por mãos europeias para olhos europeus, fixando na história mais uma imagem de um salvador heroico. |
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