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60 Anos, 60 Histórias

Capital sem higiene. As condições sanitárias do Rio

“As casinhas do cortiço (…) enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a queas tintas secassem” – Álvares de Azevedo em O Cortiço

Redação Jornal de Brasília

30/01/2020 8h58

Olavo David Neto e  Vítor Mendonça
[email protected]

A sede do Poder Público nacional tomada por epidemias. O próprio presidente da República sucumbe, contaminado pela doença. Corpos espalhados nas calçadas da capital do país. Se hoje o Brasil ainda discute seus problemas de saneamento básico, tais imagens, felizmente, agora parecem inimagináveis. Mas durante muito tempo tal cenário aconteceu no Rio de Janeiro, a cidade que abrigava as maiores autoridades do país, com alguma frequência. E a necessidade de busca de ambiente mais salubre, menos úmido, menos próximo dos portos por onde muitas vezes entravam as doenças, foi outro dos pontos envolvidos na discussão sobre a necessidade de transferência da capital para o interior.

Rodrigues Alves: o presidente foi uma das vítimas fatais da epidemia de gripe espanhola.

Vítima de um furacão demográfico entre 1700 e 1900, a então capital brasileira experimentou um confuso crescimento urbano — que deu luz aos cortiços, imortalizados na obra de Aluísio Azevedo — e, por isso, enfrentava graves problemas de higiene pública. Fato que também inflava os argumentos de que tamanha importância política não deveria continuar numa região tomada por doenças infecciosas.

Crescimento desordenado

Tendo em vista a expansão desordenada da sede da colônia, Veloso de Oliveira, deputado pela província de São Paulo, propusera em textos encaminhados às Cortes de Lisboa, pouco antes da Independência, o estabelecimento dos arautos coloniais no interior do país, para se afastar das doenças praianas. “Ele já defendia a transferência da capital”, aponta o historiador Kelerson Semerene, do departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). “E, entre os elementos, ele apontava o crescimento do Rio de Janeiro e as consequências disso, entre elas a questão da proliferação de doenças, por ser uma cidade portuária”, cita o pesquisador.

Segundo o Atlas Histórico do Brasil, elaborado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a população do Rio de Janeiro, até meados de 1700, girava em torno de 4 mil habitantes. Quando Salvador perdeu o status de sede colonial portuguesa, em 1763, a população fluminense já beirava 40 mil pessoas. Ou seja, em pouco mais de 60 anos, a população cresceu dez vezes. Em 1808, com a fuga da dinastia de Orleans e Bragança para o Novo Mundo, o Rio contabilizava 60 mil almas, tendo um acréscimo populacional de 10 mil a 15 mil pessoas com a chegada da corte portuguesa à Baía de Guanabara.

Fuga para Petrópolis

A chegada da família real forçou a mudança de aproximadamente um quarto da população fluminense para as periferias da cidade para que os cortesões portugueses passassem a habitar as regiões mais nobres do centro da cidade. O episódio entrou para a História com a sigla “P.R” – isto é, “Príncipe Regente” -, em menção aos prédios desocupados para ocupação da corte. O bom humor que já caracterizava o carioca trocou o significado da sigla para “Prédio Roubado” ou “Ponha-se na Rua”.

À época da volta do rei D. João VI à Europa, em 1821, o contingente populacional fluminense chegava a 150 mil pessoas, um crescimento de 3.750% em 121 anos — e é desta época a proposta do parlamentar paulista de interiorização da capital. Tamanha expansão fez eclodir uma série de epidemias, e no verão, com temperaturas mais elevadas, era costumeiro que as maiores personalidades da cidade deixassem os casarões e subissem a serra. “Petrópolis acaba se tornando um refúgio para a família real e também para o corpo diplomático europeu; é uma cidade serrana, menos úmida, com temperatura mais baixa”, cita Semerene. “O Rio de Janeiro vai ser, ao longo do século XIX, uma cidade sempre assolada por doenças que chegam pelo porto.”

Revolta contra a “picadinha”

E o ritmo do crescimento urbano do Rio não parou. O primeiro censo realizado pela então Diretoria Geral de Estatística (DGE) se deu em 1872, 52 anos após a estimativa levantada pelo Atlas Histórico Brasileiro.

À época, o DGE aferiu que 275 mil pessoas habitavam a Cidade Maravilhosa na primeira metade de século do Brasil como país independente.

Oito anos depois, mais de 522 mil habitantes circulavam pela então capital do país, número que chegou a 811 mil na virada do século, em 1900, ano de publicação de “O Cortiço”.

Na obra, Aluísio Azevedo dedica o primeiro capítulo à descrição das estalagens, onde moravam dezenas de pessoas. Eram casarões antigos, geralmente mal cuidados, herança de uma riqueza esvaída ao longo do século XIX. São recorrentes no livro as referências à procura por acomodações deste estilo. “Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las”, escreve Azevedo.

Desafio da saúde pública

A revolta da vacina: a população se insurge contra o esforço sanitário de Oswaldo Cruz.

No alvorecer do século XX, as questões de saúde pública viraram alvo de disputa política. Em 1902, o decreto nº 4.463, assinado pelo presidente Campos Salles, levava de volta à alçada federal a higiene pública da capital da República, atribuída ao município em 1892, quando da reorganização dos poderes nacionais.

Já no governo de Rodrigues Alves, em 1903, Oswaldo Cruz assumiu a chefia da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) com o objetivo de sanear a cidade do Rio de Janeiro. Municiado pelo decreto 1.151, de 1904, que ampliou as atribuições do órgão, ele teve poder para gerir a higiene domiciliária e a polícia sanitária, além de intervir nos estudos de enfermidades infecciosas do então Distrito Federal.

Para tal, o médico sanitarista, que já pesquisava a influência de microrganismos na saúde humana, passou a investir no combate aos vetores de transmissão de algumas doenças, como a própria febre amarela e a varíola, influenciado pelo médico francês Louis Pasteur.

Os esforços de Cruz acarretaram em uma grande campanha de higiene para livrar o Rio de Janeiro das epidemias das quais a cidade, com frequência, via-se refém. Dentre os projetos, a reorganização urbanística tocada pelo prefeito biônico do Distrito Federal Francisco Pereira Passos, e uma reforma sanitária, que ficou a cargo do chefe do DGSP.

Tocadas com certo autoritarismo pelas forças policiais, as campanhas de higienização, limpeza e, principalmente, imunização empreendidas por Oswaldo Cruz não foram bem recebidas pela população fluminense.

“No século XIX, havia toda uma iniciativa de saneamento da cidade do Rio de Janeiro, com abertura de vias públicas, com campanhas de vacinação”, explica Semerene.

“[Essas questões] vão, inclusive, deflagrar a famosa Revolta da Vacina”, completa o professor.

Em busca de um clima mais seco e condições mais salubres

“A senhora já foi vacinada? Sim, na noite do casamento!” (Avenida 08/10/1904 Charge de Sil)

Além do medo de receber dentro do corpo uma bactéria, tido pelos populares como forma de eliminação das classes mais baixas, o descontentamento pelo precário padrão de vida e um conservadorismo vigoroso contribuíram para a insurgência, que durou de 10 a 20 de novembro de 1904.

Alvo de piadas, a “picada” da agulha remetia a uma penetração sexual no imaginário coletivo e instigava a sociedade a rejeitar as campanhas promovidas pelo governo. Assim, populares tomaram carros de vacinação e botaram funcionários públicos para correr. Apenas com a decretação de estado de sítio, o motim foi contido. Apesar das derrotas, os revoltosos acuaram o governo, que retirou a obrigatoriedade da vacina, mesmo que os atestados de imunização fossem exigidos para contratos de trabalho, viagens, casamentos, alistamento militar, matrícula em escolas públicas e hospedagens em hotéis.

Mudancistas

As condições sanitárias do Rio foram constantemente rememoradas por “mudancistas” ao longo da história para justificar uma mudança da capital. O argumento mais contundente veio de Francisco Adolfo de Varnhagen, já citado neste especial, entre as décadas de 1840 e 1880.

“A região proposta por ele tinha alta altitude e então teria um clima mais ameno; segundo ele, mais seco e menos quente, onde essas doenças comuns ao Rio de Janeiro não tinham grassado”, comenta o professor Kelerson Semerene.

Porque, mesmo com o Rio de Janeiro mais bem urbanizado e muitas questões de saúde pública resolvidas, epidemias continuaram. A pior delas foi a gripe espanhola, que, em 1918, matou mais de 50 milhões de pessoas no mundo. Entre elas, o próprio presidente brasileiro Rodrigues Alves.

AMANHÃ: O país precisa de um elo que o una.

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