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60 Anos, 60 Histórias

As aventuras do Dr. Bernardo

“Vim aqui dizer adeus a Bernardo Sayão, morto no campo da honra, morto na batalha em favor de um novo Brasil”JK, no discurso de despedida a Bernardo Sayão

Redação Jornal de Brasília

27/03/2020 9h33

Atualizada 28/03/2020 10h28

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
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O ano de 1959 começou cheio de expectativas. Era o terceiro ano de obras no Planalto Central, onde despontavam os primeiros prédios públicos da então futura capital do país. Iniciava-se, portanto, a fase final da empreitada brasileira. Sim, brasileira, pois, apesar da oposição de alguns setores da sociedade, o tecido social candango já se compunha a partir de diversos retalhos — e retratos — dos mais longínquos recantos do país. Tinha-se por Brasília a luta por um ideal nacionalista, de integração, bem como conceberam os primeiros mudancistas.

No cerrado, a mistura estava feita. Quanto menos barro se tinha no horizonte, mais poeira se acumulava no céu, enrubescendo ainda mais os fantásticos crepúsculos de uma cidade em gestação. Conforme recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) feito especialmente no canteiro de obras que era a então futura sede da administração pública nacional, o avião desenhado por Lúcio Costa, a cada dia, tornava-se uma cópia mais fidedigna da dinâmica sociopolítica do Brasil.

Brasília tinha, à época, pouco mais de 65 mil pessoas, quase metade delas analfabetas. Das casas, apenas 37% tinha fornecimento de luz elétrica e quase 22% não tinha abastecimento de água; máquinas de lavar só se viam em 34,5% das residências; manter os alimentos em geladeiras era luxo: somente 6,5% das habitações contavam com aparelhos do gênero; e nem a comunicação servia como consolo, já que aparelhos de rádio — o principal meios de propagação de informação da época — limitavam-se a 26,4% dos alojamentos.

Integração para quem?

A imensa maioria dos candangos, quase 13 mil pessoas naquele ano, apenas cruzara a novíssima fronteira de Goiás. Cerca de 11 mil deixaram as terras mineiras pela epopeia de Juscelino, e aproximadamente 7,5 mil brasileiros no Planalto Central vieram da Bahia. Em três anos, algo perto de 7,3 mil indivíduos já tinham registro de nascimento feito no novo Distrito Federal. Juntos, Ceará, Pernambuco e Paraíba perderam em torno de 11 mil pessoas para as obras da nova capital.

Em menor número, Rio de Janeiro, São Paulo e os estados do Sul também se viam representados nas edificações do futuro centro de poder da nação.

Quase irrisória, porém, foi a participação da população nortista. Segundo o mesmo estudo do IBGE, menos de 350 pessoas oriundas da região Norte foram registradas nos acampamentos candangos. Era, novamente, uma prova sem possível rejeição de que o Brasil não chegava à área amazônica, e vice-versa. Evidência irrefutável de que o eixo brasileiro deslocava-se para baixo e para leste, rumo ao litoral. Se vivos, mudancistas como José Bonifácio, Francisco Adolfo de Varnhagen e Hipólito José da Costa certamente aproveitariam essas estatísticas.

Carioca, goiano e candango

Um dos principais pontos atacados por Juscelino Kubitschek no início das obras foi a integração nacional. Por isso, ainda em 1957, a 14 de maio, o presidente convocou Bernardo Sayão ao Palácio do Catetinho e incumbiu o engenheiro e diretor da Novacap da missão que o tornaria uma lenda. A rodovia se mostrava um sonho antigo para Sayão, conforme conta Juscelino em Por Que Construí Brasília. “Sempre sonhei com esta estrada, presidente (…); posso afirmar que este é o dia mais feliz da minha vida”, respondeu.

A vida de Bernardo Sayão Carvalho Araújo começara no Rio de Janeiro em 1901, na Tijuca, coração da Zona Norte carioca. Em Nova Friburgo, região serrana do estado, ele fugia das aulas para escalar os 530 metros do Morro das Duas Pedras sem qualquer tipo de proteção. O amor pelo mato o fez engenheiro agrônomo em 1923, e no pós-golpe de Getúlio Vargas, Sayão fez a si mesmo indispensável para a Marcha ao Oeste promovida pelo mais novo ditador brasileiro.

Fundada em 1937, Goiânia contou com as estradas traçadas pelo engenheiro tijucano para se consolidar enquanto nova sede do poder estadual. Pouco mais tarde, ainda a mando do chefe do Executivo, fundou no interior goiano, à beira do Rio das Almas, a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, que deu vida à cidade de Ceres. Abriu estradas, fazendas, formou povoados e se fez do povo. Simples como só ele, percorria — num jipe enlameado — ou sobrevoava as cercanias e conversava com populares, eternos bichos desconhecidos para os filhos de berços mais dourados.

A árvore derrubou o desbravador

Já em época democrática, foi eleito vice-governador de Goiás na chapa de José Ludovico, mencionado anteriormente neste especial. Com a impugnação do governador eleito, assumiu o estado a 31 de janeiro de 1955. “Ele chegou ao Palácio das Esmeraldas naquele carro dele todo sujo, de botas todas sujas”, conta o jornalista Jarbas Silva Marques. “O dr. Bernardo disse que era o governador interino, que estava ali para assumir o estado”, relata o pesquisador. Ao riso do militar, se seguiu um constrangimento porque, de fato, aquele era o chefe da vez.

Como muita gente que acompanhou a vida do engenheiro, Marques tem carinho especial por Sayão.

“O governo brasileiro confiscou um Junker alemão da Segunda Guerra em Goiás, e ele pilotava esse avião, que tinha a frente de vidro. Então, toda vez que levantava voo a gente apontava e falava ‘olha lá o avião do dr. Sayão’”, relembra o ex-diretor do instituto Histórico e Geográfico do DF.

Amigo dos operários, homem forte da execução dos projetos, o carioca logo se jogou de corpo e alma ao projeto, e, de imediato, alçou voo rumo a Goiânia para acertar os pormenores da construção da Belém-Brasília. Uma empreitada de tal envergadura, entretanto, não seria possível com uma única frente. Assim, dedicou-se ao comando do esforço ao Sul, partindo de Brasília, enquanto de Belém descia a equipe do Norte. Restando menos de 30 quilômetros para o encontro dos dois destacamentos, os comandados de Bernardo Sayão acamparam.

Sem recursos

Em local próximo a Imperatriz — no Maranhão, mas rente à fronteira com o Pará —, o grupo padecia com a ausência de recursos e o aparente descaso dos camaradas de provimento. “Aqui estamos na iminência de parar o serviço por falta de alimentação para o pessoal”, queixava-se Sayão.

“Amanhã não teremos recursos para o almoço, e é estranho o silêncio, a indiferença de quem está na retaguarda, devidamente abastecido, pelos que aqui estão fazendo uma coisa necessária no momento”, disse o diretor da Novacap em telegrama.

Outro bilhete, este encaminhado à base mais próxima, narrava o desespero daqueles homens. “Se não mandarem mantimento, estamos com os dias contados”, profetizou Sayão. Mal sabia ele o quanto estava certo. Um semana depois, partiu da mesma base para o local da estrada e, enquanto discutia detalhes com colegas dentro da barraca que o alojava, um corte irresponsável de uma árvore nas proximidades gerou tensão no local. Quando um dos homens saiu, um enorme tronco despencou sobre os outros dois. Jorge Dias saiu com o braço machucado, mas Bernardo não se fazia ver.

“De súbito, sua figura hercúlea destacara-se entre a galharia deitada. Estava de pé. Mas mortalmente ferido”, narra Juscelino, com base nos relatos dos companheiros de Bernardo. O crânio, que recebera a árvore na queda, afundou-se com o impacto. O braço foi esmagado pelo tronco, enquanto por baixo das botas deixava-se entrever uma fratura exposta. Bernardo caminhou até uma lasca de madeira derrubada, sentou e solicitou que lhe tirassem o calçado, resistindo heroicamente à dor e ao esforço. O rosto transfigurou-se em sofrimento, a mais pura representação da agonia.

Sayão, para surpresa de todos, estava impassível. Com serenidade, tremia de dor e dava ordens aos operários. O sangue vertia em direção ao solo, tornando todo seu caminho rubro. Exaurido, pediu que o deitassem.

Estirado na rede de cabeça para cima, vislumbrava as maravilhas da floresta por entre as pálpebras, estas a meio caminho de se fecharem. E, ali, viu o mundo pela última vez. Os companheiros de empreitada, desesperados, constataram que Sayão dava um largo passo para entrar na História. O coração, que sempre se sobrepôs ao cérebro, permanecia ativo. Não se sabe se chegou a avistar a chegada do avião, às 15h, com os mantimentos que tanto barulho fez para obter.

O pandemônio se instaurou na frente Sul da Belém-Brasília. Em pânico, os trabalhadores gesticulavam para a aeronave na esperança de que o piloto, a alguns quilômetros de altura, entendesse a gravidade da situação. No desespero, cruzaram dois paus da mesma madeira que tirara a consciência do chefe. Colocaram-no sobre as próprias camisas, tiradas dos corpos retesados pelo pavor.

O avião deu meia volta e se foi.

“Quem será o primeiro?”

Por volta das 19h, um helicóptero despontou no local para o resgate do engenheiro. Não se contava, porém, que ele morresse na metade do caminho para Açailândia, município maranhense nas proximidades das obras. Quando chegou ao pequeno núcleo urbano, a aeronave foi cercada pelos moradores, as primeiras testemunhas da morte de Bernardo Sayão. Levaram o corpo desfigurado a um casebre, onde o deitaram por sobre galões de gasolina.

Enquanto alguns mais entendidos acorreram aos aparelhos de rádio, em busca do meio para a mensagem pesarosa, os populares se amontoaram ao redor do falecido, velando-o, chorando por si. Aquela população esquecida para as bandas do Norte via em Bernardo Sayão o desbravador que os ligaria ao país que conheciam, mas só de nome. Logo perderam o herói.

“Antes mesmo que o rádio o contasse, já se sabia, em Belém e em Brasília, o que havia acontecido”, narra Juscelino. “Como? Ninguém poderia dizê-lo”, completa JK.

O Ritmo Brasília, de cargas horárias ultrajantes, cessou. Sequer o barulho das máquinas podia-se ouvir nos canteiros de obras. Coletivamente silenciosa se quedou a futura cidade. Fitas crepe improvisavam cruzes nas janelas e portas da Cidade Livre. Lá, Benedito Segundo recebeu a notícia dentro do carro e abaixou a cabeça. Do nada, o motorista de Sayão foi de encontro ao patrão. As centenas de caminhões do Planalto Central exibiam panos pretos nos parachoques.

O corpo chegou no dia seguinte, e enquanto o cortejo se desenrolava, um pensamento rasgava as mentes candangas: Sayão iria inaugurar o cemitério que demarcou. Contava-se entre os trabalhadores a história de que, na demarcação do logradouro final de todos os homens, o engenheiro interrompia os colegas com certa frequência. “Quem será o primeiro?”, questionava, risonho. Foram, na verdade. No sábado, o mais novo cemitério do Brasil abria as portas para dois companheiros.

De iniciais idênticas e vidas entrecruzadas, Bernardo Sayão e Benedito Segundo inauguraram o Campo da Boa Esperança, no final da Asa Sul. Tão primitivo à época que mais dois quilômetros de estrada foram abertos para ligar a cidade ao local. Juscelino discursou e chorou a morte do amigo.

“Vim aqui dizer adeus a Bernardo Sayão, morto no campo da honra, morto na batalha em favor de um novo Brasil”, proferiu o presidente da República.

O adeus mais notório, porém, veio logo depois. Os candangos se reuniram e elegeram um representante para uma última homenagem àquele ao qual tanto amaram. Trêmulo, tímido e enlutado, José de Souza se aproximou do túmulo com duas plantas ornamentais.

“Esta flor roxa significa nosso luto”, disse, em fiapos. “E esta amarela simboliza o nosso desespero pela tua falta”, finalizou o operário.

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