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60 Anos, 60 Histórias

Admirável cidade nova

“Como é belo o gênero humano! | Ó Admirável Mundo Novo | Que possui gente assim!” | William Shakespeare em “A Tempestade”

Redação Jornal de Brasília

03/04/2020 10h46

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

As obras seguiam a todo vapor, impondo o “Ritmo Brasília” aos candangos que subiam a alturas vertiginosas sem qualquer equipamento de proteção. Era a corrida contra o tempo estipulada por  Juscelino Kubitschek, que via no cumprimento da data estipulada pelo Congresso Nacional a única chance da nova capital não se tornar um “elefante branco” em meio ao cerrado desabitado. Isto porque, dependendo da sucessão presidencial, a construção e posterior transferência do serviço público ao Planalto Central poderia ter o ímpeto reduzido – além de manchar a própria imagem de JK, por construir algo inutilizável.

O ano de 1959, portanto, era decisivo. Antevia-se no horizonte a data para abertura do novo núcleo administrativo do Brasil, e o crescente aumento na expectativa para a inauguração já atraía olhares do mundo inteiro para a epopeia brasileira. Neste período, portanto, autoridades internacionais eram convidadas ou solicitavam ao governo federal uma visita àquele canteiro de obras que virara assunto ao redor do globo terrestre. Boa parte das nações que mantinham relações diplomáticas com o Brasil esperavam ansiosas. Brasília era o “ver para crer” da época.

E não era para menos. O próprio Juscelino Kubitschek confidenciava aos mais íntimos que poucas cidades no mundo surgiram com o propósito de abrigar os maiores podres de uma nação. Washington, nos EUA, era um dos exemplos mais notórios, e, em 1960, Brasília se juntaria ao seleto rol. A construção da nova sede administrativa brasileira merecia, sim, a atenção de um planeta do qual nossa nação dava um passo para assumir certo protagonismo, negado por outros e por nós durante pouco mais de 450 anos.

Apresentada ao mundo

No dia 5 de fevereiro – pouco tempo após a morte de Bernardo Sayão, abordada na 43ª parte desta série -, o príncipe Bernardo de Lipa-Biesterfeld, dos Países Baixos (região que engloba Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que formaram o Benelux, órgão precursor da União Europeia), visitou a futura capital. Atualmente, porém, o nome faz referência apenas à nação holandesa. Pouco mais tarde, Catarina Worsley, duquesa de Kent, no Reino Unido, e parte da família real britânica, deixou o conforto dos palácios europeus para conhecer de perto a façanha brasileira.

O primeiro-ministro cubano, Fidel Castro, chegou ao cerrado em abril, como visto na última reportagem. O único membro do Executivo de uma nação estrangeira a desembarcar no canteiro de obras em 1959 foi o sr. Vulkmanovic, vice-presidente da antiga Iugoslávia. Dos países nórdicos, apenas o ministro de Comércio da Noruega, Ame Skaug, esteve em Brasília. As vizinhas Argentina e Venezuela enviaram seus respectivos chanceleres, bem como Equador e El Salvador.

Agosto, sem dúvida, foi um mês pulsante. Da França, vieram o escritor e ministro da Cultura André Malraux e o chefe da pasta das Finanças, Antoine Pinay, com uma carta a tiracolo. “Senhor presidente, solicitei ao sr. André Malraux (…) que transmitisse a Vossa Excelência a saudação amiga da França”, escreveu Charles De Gaulle, presidente francês que retomou o país após a invasão nazista, na década anterior. “[A visita] testemunhará igualmente o interesse com que o povo francês e eu mesmo seguimos os grandes empreendimentos que se realizam no Brasil, em todos os setores”, continuou o chefe de Estado europeu.

A visita às obras mexeu com Malraux. À frente da reconstrução francesa no pós-guerra, o escritor ainda carregava consigo impressões do conflito, cuja expansão levou à ocupação alemã em Paris – à qual ele foi um dos principais combatentes. Por isso, ao testemunhar o surgimento de uma nova sociedade do chão, do nada, tomou-se de ufanismo. “Que nos seja dado construir uma civilização que se assemelhe à nossa esperança, uma civilização que coloque todas as grandes obras da humanidade a serviço de quantos homens as reclamarem”, declarou o francês. Ao fim da visita, como despedida de Brasília, abriu-se à cidade. “Salve, capital intrépida, que recordas ao mundo estarem os teus monumentos a serviço do espírito!”

Huxley em Brasília

Dos Estados Unidos, o escritor Aldous Huxley veio a Brasília. Na companhia de sua esposa, Laura, e da poeta Elizabeth Bishop, visitaram o canteiro de obras e passearam pela Cidade Livre. Autor do clássico “Admirável Mundo Novo”, no qual apresenta uma sociedade distópica, dividida por castas e mantida feliz de produtos químicos e realidade virtual, Huxley testemunhou uma capital que deveria trazer a eliminação das segmentações sociais brasileiras, mas apresentava os mesmos vícios  apartadores já na sua concepção.

Tanto é que, em uma sessão de cinema à qual acompanharam, presenciaram, com espanto, a exibição do filme “E Deus Criou a Mulher”, de Roger Vadin, ser interrompida na primeira cena de nudez frontal da protagonista, interpretada por Brigitte Bardot. “O projecionista, que sem dúvida já vira o filme, disse: ‘As senhoras e senhoritas queiram por favor sair e esperar lá fora’ ”, relatou Bishop. Os três se mostraram encantados com a edificação da maior epopeia vista no século XX, à exceção das guerras que milhões acompanharam repletos de pavor.

Mas, ao se despedir, Aldous Huxley se derreteu pela futura capital do Brasil. Oriundo da antiga capital mineira, de estilo colonial e barroco, deparou, no centro administrativo em construção, uma porta para o futuro. “Vim diretamente de Ouro Preto a Brasília. Que jornada dramática através do tempo e da história! Uma jornada do ontem para o amanhã, do que está acabado para o que está prestes a começar, de conquistas antigas às novas promessas”, proferiu.

À medida que se tornava de fato uma realidade, Brasília ia atraindo negócios. As companhias aéreas destacavam as suas rotas com destino à nova capital.

Hora dos negócios

O interesse pela nova cidade começava a levar ao surgimento de negócios. O interesse comercial e turístico pela nova capital começou quando a Lei nº 2.874 – que estipulou o início das obras e definiu, no artigo 33, o nome da cidade, em homenagem ao batismo dado por José Bonifácio ainda no início do século XIX, como visto na 23ª reportagem deste especial – era devolvida ao Executivo para sanção. Com uma alcunha, era possível criar campanhas e gerar interesse por aquela área remota do Planalto Central, dando razão, quase 80 anos depois, ao argumento de Francisco Adolfo de Varnhagen, que calculou que as visitas a um centro de poder interiorano estimulariam as visitas ao centro do país, com os passeantes deixando riquezas ao longo do caminho.

Ainda em 1957, a Real Aerovias Nacional passou a veicular anúncios no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, oferecendo dois voos semanais para Brasília a partir de Belo Horizonte. As ofertas foram publicadas de agosto a setembro daquele ano, e posteriormente a companhia aérea comprou espaço publicitário no Diário de Notícias, também do Rio, de outubro ao fim de novembro. A demanda crescia, e cresceram também os itinerários. Já em 1958, a Vasp ofertava dois voos diários entre a futura e a então capital da República ou a Belo Horizonte. O serviço foi divulgado entre 2 de março e 30 de abril no Jornal de Notícias, da capital goiana.

Também no Correio da Manhã, desta vez de 24 de setembro, é possível encontrar um anúncio da imobiliária Lima Leal nos classificados do periódico. Nele, a empresa oferecia “plantas, mapas, condições de venda dos lotes urbanos da Novacap – Brasília”. A Gazeta Esportiva, de São Paulo, anunciava, de 18 a 31 de dezembro 1958, uma premiação para quem resolvesse uma dada equação matemática. Quem acertasse teria direito a um terreno de 300 metros quadrados, “pagando somente as pequenas despesas referentes a documentação, num dos loteamentos mais próximos da nova, moderna e gigantesca capital federal”. 

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