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60 Anos, 60 Histórias

A rodovia das onças

“Parece um cordão sem pontaPelo chão desenroladoRasgando tudo o que encontraA terra de lado a lado”Sidney Miller em “A estrada e o violeiro”

Olavo David Neto

15/03/2020 20h00

Olavo Davi Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

A integração foi um problema para o Brasil. Seja enquanto colônia portuguesa, sede do império ultramarino lusitano ou país independente, o país sempre fora gerido do litoral para as vontades litorâneas. Resultado disso era a imensa defasagem populacional e desenvolvimentista no interior do território brasileiro, sempre esquecido, remoto e tido como desconhecido. Desde a concepção de uma ideia de interiorização da capital se pensava em utilizar o coração geográfico da nação para unir esse continente gerido sob uma única bandeira.

Como vimos ao longo desta série, os passos definitivos para a construção da terceira sede do poder nacional vieram nas décadas de 1940 e 1950. A partir de então, era palpável pensar que o país se voltaria às regiões mais isoladas, histórica e sistematicamente esquecidas pelo poder público por mais de 400 anos. Goiás e Minas, por exemplo, atuaram com afinco para abrigar o centro político nacional. Com o início da construção, em 1956, no Planalto goiano, outros estados abriram os olhos à edificação de Brasília.

Nem só da assunção do novo centro de poder brasileiro, porém, viviam as expectativas. O mandato de Juscelino Kubitschek à frente da República representou o fortalecimento da indústria nacional, principalmente no tocante à produção de automóveis. De acordo com o Atlas Histórico Brasileiro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a produção de automóveis de pequeno porte era nula no Brasil; as caminhonetes somavam 2.500; utilitários, para transporte de cargas e pessoas, eram nove mil; e 17 mil caminhões foram fabricados.

Todos os indicativos cresceram dali a três anos, o último de JK na Presidência. Carros pequenos chegaram a 38 mil; os de médio porte bateram 34 mil unidades; os utilitários alcançaram 20 mil; e 42 mil caminhões saíram de fábrica em 1960. Ou seja, o projeto nacional-desenvolvimentista de Juscelino, herdado de Vargas, baseava-se na produção automobilística — inclusive com atrativos para a recepção de montadoras estrangeiras. Mas onde esses veículos rodariam?

Cortando o Brasil de estradas

Até 1957, o interior brasileiro possuía pouquíssimas estradas de rodagem. Esse foi, inclusive, um dos principais problemas no início da construção da nova capital. Como citado na última reportagem, há relatos de atolamentos de caminhões e até tratores nas principais vias de recebimento de cargas do então futuro Distrito Federal. Passou-se, então, a promover a abertura e pavimentação de rodovias, sobretudo as que ligavam Belo Horizonte, Goiânia, Anápolis e Mato Grosso ao canteiro de obras no Planalto Central.

O Nordeste foi completamente riscado de caminhos entre 1957 e 1964. Os nove estados da região foram interligados por rodovias automotivas, sobretudo os interiores de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. O Rio Grande do Sul também se viu cortado por vias, que partiam de Porto Alegre até as fronteiras com Paraguai, Argentina e Uruguai, ou conectadas ao centro político.

Peça ao desbravador

Motivo de disputas internacionais até os dias atuais, a Amazônia era um recanto quase místico para o Brasil litorâneo. Conforme conta Juscelino em Por que construí Brasília, a conexão dos Brasis em um só era-lhe uma obsessão. “Quando sobrevoava a Amazônia, figurava na mente a linha reta que vincularia Brasília a Belém”, relata JK. Ao sentar-se para despachos no Catetinho, no dia 14 de maio, o presidente recebeu a visita do mais goiano dos cariocas, e do mais aventureiro dos candangos: o engenheiro e diretor executivo da Novacap, Bernardo Sayão.

Lenda da fase inicial da nova capital — aliás, da Brasília antes de Brasília —, Sayão é equiparado por Juscelino a uma figura, à época, vista com misticismo heróico. “Sayão era o Fernão Dias de que necessitava — o bandeirante do século XX, que, ao invés de botas, usava um teco-teco”, escreve o presidente. Para integrar o país, era necessário cortar ao meio “a selva (…) misteriosa e cheia de insídia”, onde muitos “tinham sido tragados pelo oceano verde”.

As reações de Bernardo mostravam, para Juscelino, o ímpeto pelo qual era conhecido o desbravador. “Quando disse a Sayão o projeto que tinha em mente, percebi que sua fisionomia se alterava”, relatou. “Olhava-me fixamente, para não perder uma só palavra do que proferia. (…) Tratava-se de uma empresa só compatível com homens excepcionais”, narra o autor. Quando JK finalizou a explanação e o convidou para a empreitada, o engenheiro quase não coube na sua colossal estatura.

“Sempre sonhei com esta estrada, presidente”, respondeu Sayão, que construíra, na década de 1940, a colônia agrícola de Ceres, em Goiás, no traçado da futura estrada. “Posso dizer que este é o momento mais feliz da minha vida”, disse, ao que recebeu do chefe do Executivo a ordem de começar imediatamente o planejamento. Do Catetinho, Sayão montou novamente em seu avião e rumou a Goiânia para as primeiras providências. De lá, ainda em maio, partiu para Belém.

Sayão caiu de cabeça no projeto da rodovia, que teria 2.240 km de extensão, com pontas em Brasília, no Centro-Oeste, e Belém, no Pará, “a fim de permitir que o Brasil fosse unido, por terra, do Norte ao Sul”, conforme registrou César Prates em Do Catetinho ao Alvorada — uma espécie de diário da construção. O engenheiro faria a estrada no meio da selva, que à época ganhou o apelido de “rodovia das onças” ou aquela que ligava “o nada a lugar nenhum”. A pavimentação, contudo, demandaria muito esforço caso feita a partir de uma única frente. Por isso, os paraenses foram convocados.

JK dentro de um caminhão cheio de candangos: rasgar a selva para construir a rodovia foi uma das grandes aventuras da construção de Brasília.

De uma ponta à outra

Ao senador suplente pelo Partido Social Democrático (PSD) de Minas Gerais, Waldir Bouhid, fora incumbida, em 1955, a chefia da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA). Ao cargo, somou-se a direção da Rodobrás, responsável pelas obras asfálticas daquele período no Brasil. Pelo acordo costurado por Sayão, a SPVEA rasgaria a floresta a partir do Norte, enquanto a Rodobrás seguiria a partir da frente Sul, originária em Brasília.

Numa reunião em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, os líderes das duas frentes e Juscelino Kubitschek entrevistaram possíveis fornecedores de materiais e máquinas para a construção da Belém-Brasília. O mineiro Oto Barcelos — amigo de infância de JK -— demonstrou-se apto a entregar o trabalho. Barcelos, porém, não detinha o maquinário nas sedes de sua empresa, também no Rio, tendo que importá-las dos Estados Unidos. O prazo dado para a chegada dos equipamentos foi de quatro meses, o que retardou o início das obras.

Bernardo Sayão foi o “bandeirante” que JK precisava para concretizar sua saga

O luto veio da luta

O Dr. Bernardo, como ficou conhecido entre os candangos, era, de fato, um desbravador. Com botas de cano alto e calças largas, rodava pelos canteiros obreiros num jipe, invariavelmente tomado por lama.

Simpático, dono de abrangente sorriso e homem de simplicidade notória, tornou-se bem quisto entre os operários por fazer as refeições junto ao proletariado — numa época em que até os precários acampamentos pioneiros apontavam a estratificação social brasileira, como veremos mais à frente.

Adentrava no mato como um aventureiro, e, ao contrário dos bandeirantes, com os quais frequentemente é comparado (a exemplo da fala de Juscelino), não precisou matar ou escravizar para dar frente a uma colonização. Desde o início da odisseia brasileira — e brasiliense — teve participação ímpar no sonho candango. Foi ele, por exemplo, que demarcou a pista do aeroporto de Vera Cruz, o primeiro do Planalto Central, como visto na 22ª reportagem desta série, além de se dedicar à edificação da estrada entre Anápolis e a futura capital.

A Belém-Brasília, porém, é o maior legado do diretor da Novacap. É o ápice da carreira desbravadora de Sayão, o trabalho que o alçou a mártir da terceira capital do país. É, também, o projeto que lhe custou a vida, mas pagou-lhe com o registro na História. Curiosamente, os limites entre homem e lenda fizeram-se mais turvos com o traçado da estrada mais representativa do fulgurante período desenvolvimentista capitaneado por Juscelino Kubitschek. Este assunto, porém, veremos mais adiante.

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