Olavo David Neto e Vítor Mendonça
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A pós toda a comoção em torno da situação política do Rio de Janeiro quando Brasília recebesse a sede administrativa da República, quem se ergueu a Distrito Federal foi o Planalto Central. No cerrado, as mesmas condições que, antes, imperavam na Baía de Guanabara foram estabelecidas. Com a criação do estado da Guanabara, o antigo município neutro se tornara uma cidade-estado, capital de si mesma. Nunca antes na história da Brasil independente algo semelhante ocorrera. Assim como também nunca se averiguara tamanho esforço estatal em atribuir funções a uma nova Unidade Federativa.
Os esforços para a criação de uma estrutura mínima de poder, capaz de dar vida a um organograma governamental para o novo DF, resultaram na Lei nº 3.751/60. Sancionada a 13 de abril – a oito dias da inauguração, portanto, e sete depois da chegada dos primeiros funcionários transferidos do Rio -, balizou a estrutura administrativa, atribuições, direitos e obrigações do Distrito Federal. Conforme a norma, o DF poderia criar e gerir os impostos que incidiriam sobre sua população, bem como “prover as necessidades do seu governo e da sua administração, podendo, se necessário, pedir auxílio à União”, além de estipular os limites e redigir o estatuto dos seus funcionários”.
Também se previu a autonomia para elaborar leis locais e suplementares à Constituição de 1946. No artigo 4° das Disposições Preliminares foram definidas as funções urbanas da Unidade Federativa. Caberia ao DF, segundo a norma, “zelar pela cidade Brasília” e pelas cidades já surgidas, como Taguatinga, ou que surgiriam no decorrer dos anos – conforme o plano urbanístico de Lúcio Costa. Era atribuição do centro urbano “manter os serviços de amparo à maternidade, à infância, à velhice e à invalidez”, que já tinham diretrizes elaboradas pelo Departamento de Saúde da Novacap, comandado por Ernesto Silva – como visto na 40ª reportagem deste especial.
Incumbia ao gestor do Distrito Federal, indicado pelo presidente, organizar o sistema de ensino, com investimento em escolas públicas “de todos os graus” – seguindo, é claro, as marcações realizadas também pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital, mas sob a tutela do educador baiano Anísio Teixeira. No artigo 5º, define-se, assim como se dera no Rio de Janeiro desde 1889, quando surgiu o federalismo e, por conseguinte, um distrito especial para abrigar os maiores poderes da União, que o centro do poder público nacional seria comandado por um prefeito e por uma assembleia de vereadores, a Câmara do DF.
O Legislativo distrital
Eleitos de quatro em quatro anos – junto aos parlamentares federais -, os vereadores do centro político nacional deveriam votar os orçamentos do Executivo local, estudar a criação de secretarias de Estado, além de estipular os vencimentos do prefeito e dos próprios vereadores antes do início de cada legislatura. A dinâmica para elaboração de novas regulamentações seria a mesma observada num processo republicano, com proposições dos dois Poderes e aprovação final do chefe do Executivo. Em caso de veto, porém, uma prerrogativa especial por sediar os grandes bastiões no âmbito nacional: os vetos do prefeito seriam analisados pelo Senado, e não voltariam à Câmara distrital.
O Executivo do novo DF

O Palácio do Buriti: a sede do poder local da nova capital no seu princípio teria como comandante um prefeito. Somente depois o DF ganhou um governador
Como mencionado anteriormente, o prefeito do DF seria indicado pelo presidente da República. A nomeação, porém, dependeria do aval do Senado, que realizaria sabatinas com o escolhido pelo chefe do Executivo nacional para comandar a mais recente Unidade Federativa do país. De acordo com o parágrafo segundo do artigo 19 da Lei nº 3.751/60, a demissão do gestor local não necessitaria de justificativa, ou mesmo de acordo. Bastaria a vontade de uma das partes – seja do próprio indicado ou de quem o indicou – para que se efetivasse uma troca de comando no Planalto Central. No item seguinte, estabeleceu-se que impedimentos inferiores a 30 dias do chefe distrital se preencheriam pelo secretariado. Assim, não havia vice-prefeito para a sede administrativa da União.
Ao titular do cargo caberia a sanção e promulgação das leis votadas pela parlamento candango, bem como a emissão de decretos, fiscalização de serviços públicos, tocar operações de crédito e “decretar a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social”. O provimento dos cargos públicos da nova capital também era de responsabilidade do líder político do Distrito Federal, além de prestar contas à Câmara distrital dos atos da gestão anterior.
O comando do DF
Um dos principais pontos da lei, no que diz respeito aos braços estatais nas mais diversas áreas, é o artigo 48. Segundo ele, a União era obrigada a transferir, gratuitamente, 51% das ações da Companhia Urbanizadora da Nova Capital. Assim, após quatro anos de serviços e de uma batalha inimaginável contra o relógio, a Novacap se subordinaria ao gestor daquela cidade que a empresa, em 40 meses, viabilizou a construção.
Assim, caberia ao prefeito a indicação dos novos membros do órgão, cujos diretores e o próprio presidente seriam demissíveis unilateralmente, bem como quem os demitiria – o prefeito – o era em relação ao presidente da República. Na prática, o ainda não inaugurado Palácio do Planalto, sede a ser utilizada para despachos presidenciais, teria – ou ao menos poderia ter – ingerência direta sobre a empresa, que a partir de 13 de abril se tornaria distrital.
Também se estipulou que a Novacap gozaria de isenção de “impostos, taxas e quaisquer ônus fiscais da competência tributária do Distrito Federal.” Ap es ar da perda de arrecadação em relação à companhia, o DF recebeu, pela norma, crédito de Cr$ 100 milhões para cobrir despesas logísticas de implementação dos serviços públicos criados pela Lei, além de Cr$ 150 milhões destinados a desapropriações de terras consideradas de interesse público para o funcionamento da unidade distrital.
O “mel” do IsraelUm velho e famoso ditado entre os candangos que fizeram do barro concreto, do nada tudo e do ermo uma cidade-símbolo para o futuro do país versava sobre as funções de alguns homens da linha de frente “juscelinista” na construção. Conforme o dito, “o pão é com o [Bernardo] Sayão”, enquanto “o resto é com Ernesto [Silva]”, restando, para o Israel, o “mel”, o faz-me rir que era depositado semanalmente nas cadernetas dos milhares de operários da construção. Para além do interesse monetário, Israel Pinheiro tomou fama de bom gestor no comando da Novacap. ![]() Israel Pinheiro: o homem da Novacap seria o primeiro administrador da nova cidade Com isso, o presidente Juscelino Kubtschek, que, pelo artigo 44 contava com 10 dias a partir da publicação da lei para nomear o primeiro prefeito do novo Distrito Federal, não hesitou. Para o cargo, assim como em diversos outros aspectos relacionados à edificação de Brasília, JK depositou a confiança em Israel Pinheiro, colega das horas iniciais do Partido Social Democrático (PSD), de cujo pai herdara as ideias que imortalizaram o presidente. “A admiração de Juscelino pela família Pinheiro não começa com o Israel; começa com o pai dele, João Pinheiro, ex-governador de Minas, de quem JK absorveu todas as ideias desenvolvimentistas”, afirma o jornalista e pesquisador Jarbas Silva Marques, ex-diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Pode vir que tem cidade!Com a sanção da Lei 3751/60, Brasília estava autorizada a existir enquanto capital da República. Naquele momento, poucos dias separavam o sonho mudancista da realidade, o projeto de Lúcio Costa da concretização. De Tiradentes a Juscelino, dois séculos de História brasileira tomariam, a partir de 21 de abril, um novo rumo. Era o jovem atrasado país tomando as suas rédeas, ou ao menos era o que tudo indicava. Após pouco mais de mil dias, uma nova sede para o poder político fora erguida em meio ao cerrado vermelho e inexplorado, fazendo o Brasil volta-se a si próprio, conhecer a si mesmo. Tudo se encaminhava para o desfecho sonhado por Juscelino Kubitschek e as quase 150 mil pessoas que já provavam aos reticentes sobre a habitabilidade do novo Distrito Federal. Em 4 de abril, como dito, os primeiros funcionários públicos chegaram, ainda em meio a tratores e remendos de última hora, pitadas de improviso – como sempre fora o Brasil, e como fora erguida Brasília. Apesar dos planejamentos, dos milhares de relatórios e comissões (exploradora, localizadora, de construção e mudança), o avião pressurizado no coração geográfico do país nasceu como nascem as maiores ideias, os maiores projetos: com imprevistos superados à base de vontade. |