Menu
60 Anos, 60 Histórias

A caravana do Brasil em si mesmo

“A caravana do deserto Atravessou meu coração (…) Chegamos num final feliz Na tela prateada da ilusão” Geraldo Azevedo em “Você se lembra”

Redação Jornal de Brasília

10/04/2020 6h44

Atualizada 11/04/2020 11h11

Olavo David Neto e Vítor Mendonça
[email protected]

Conforme vimos ao longo deste especial, três pilares principais sustentaram, ao longo de um século e meio, aproximadamente, o movimento mudancista brasileiro. Os argumentos para a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central goiano sempre partiam da tríade Segurança-Saúde Pública-Integração Nacional. E, desde o início das obras de Brasília, em 1956, as bases do mudancismo se fizeram presentes nos planejamentos urbanos e prediais da então futura sede do poder da União.

A defesa da soberania, por si só, tornou-se possível com a edificação de uma cidade a mais de mil quilômetros do litoral e a mil metros do nível do mar, numa espécie de depressão entre elevações.

Quanto à saúde, o clima seco, mais ameno e de índices pluviométricos baixos se mostrou menos propício à propagação das doenças infecciosas na capital da República, fato que tanto assolou o Rio de janeiro. Além disso, um núcleo erguido do zero permitia o melhor planejamento dos equipamentos de saúde, como postos e hospitais – aspectos que vimos na 41ª reportagem deste especial.

Quanto à junção do território, mais uma vez a simples condição geográfica de Brasília facilitava o sucesso do argumento. Localizada no coração do solo brasileiro, relativamente equidistante das fronteiras terrestres a Norte, Oeste e Sul, e marítima a Leste, a nova capital se tornava acessível a boa parte da população que, fora do Sudeste, não recebia a devida atenção governamental. Outro fator de ligação são as Águas Emendadas, região em que se unem as três principais bacias hidrográficas do continente sulamericano – do Amazonas, do Prata e do São Francisco.

Frutos desse projeto integrador já se viam nos interiores de Goiás e Minas Gerais e no sertão da Bahia, estados que enviaram grandes fluxos migratórios para o maior canteiro de obras do mundo na década de 1950. Juntas, as Unidades Federativas colaboraram com 31.804 migrantes até 1959, ano em que a então futura capital contava com 64.314 habitantes, conforme dados do “Censo Brasília” do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, quase metade população candanga tinha origens goianas, mineiras ou baianas.

A indústria nacional

“Antes de Juscelino, o Brasil importava até caneta esferográfica”, diz o jornalista e pesquisador Jarbas Silva Marques. A assertiva do ex-diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal pode parecer exagero, mas está mais próxima à realidade do que se imagina. Historicamente agrária e exportadora, a nação consolidou a dinâmica herdada do período colonial à base da venda produtos crus, as commodities, e da compra de todo e qualquer produto manufaturado, numa prova da incipiência industrial brasileira.

Em 1950, por exemplo, o país obteve Cr$ 24,9 bilhões com exportações. O valor total do que foi vendido a outros países é composto, basicamente, por café (63,8%), cacau (6%) e algodão (8%). Quanto ao que foi comprado do exterior, que totalizou Cr$ 20,3 bilhões, compunha-se de máquinas e aparelhos (18,7%), produtos petrolíferos (12,3%), veículos (11,3%) e produtos químicos, farmacêuticos e estéticos (6,4%), em dados do Ministério da Fazenda – hoje da Economia – compilados pela revista Conjuntura Econômica. Assim, o país do atraso chegava à metade do século XX da mesma forma que nasceu, 450 anos antes.

Guiado pelo nacional-desenvolvimentismo, o período de Juscelino Kubitschek na Presidência da República tinha como objetivo reverter esse quadro. A produção automobilística, que nos custou Cr$ 2,3 bilhões em 1950, foi uma das áreas mais alavancadas no governo JK. Em 1957, o segundo ano de mandato do mineiro, a fabricação anual de carros no Brasil era ínfima. Cerca de duas mil caminhonetes, quase nove mil utilitários (jipes e afins) 17 mil caminhões eram saíam anualmente das fábricas.

Três anos depois, no fim da era Kubitschek, a produção de caminhonetes chegou a 34 mil, a de utilitários bateu 20 mil e 42 mil caminhões estavam aptos a rodar. Carros de passeio, que não eram produzidos no país até 1957, superaram 38 mil unidades fabricadas em 1960, segundo números do Atlas Histórico e Geográfico do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Neste mesmo ano, a empreitada no Planalto Central chegava ao fim. A poucos meses da inauguração, era preciso unir diversos pontos da gestão num único gesto representativo.

Estradas para quatro rodas

Outro ponto que merece destaque no mandato são as estradas. Tendo como símbolo a Belém-Brasília, que incluiu a Amazônia à dinâmica brasileira, as rodovias rasgadas no período facilitaram a rodagem do carros que eram produzidos aqui. O Nordeste, por exemplo, foi rasgado de estrada entre capitais e municípios interioranos dos estados da região, e o Rio Grande do Sul também recebeu diversas rodovias que ligavam o litoral ao centro do mapa gaúcho.

Eram grandes feitos de ligação do território, cumprindo a antiga e árdua missão de ligar o Brasil a si próprio. A partir de 1956, o país se redescobriu, reinventou a própria noção de si mesmo. Tida como meta-síntese, Brasília, portanto, representava esse novo caminhar da pátria, o avião para o desembarque no futuro. Nela, então, se faria chegar o Brasil nas suas mais diversas variações, nos mais diferentes sotaques.

Caravana de Integração Nacional

Ajudante de ordens, e também primo, do presidente, o major do Exército José Edson Perpétuo sugeriu uma empreitada que poderia unir os carros produzidos no Brasil, que já rodavam com gasolina brasileira e sobre estradas asfaltadas com material nacional, à inauguração da mais nova capital da República. Era o desfecho ideal para o plano nacional-desenvolvimentista de integração de Juscelino, que imediatamente topou o desafio. Formava-se a Caravana de Integração Nacional, composta por 137 veículos fabricados em solo brasileiro e 287 aventureiros, dentre governadores, prefeitos e dirigentes industriais.

No terceiro dia de 1960, uma viagem de reconhecimento foi feita por duas colunas. Uma saiu do Rio de Janeiro em direção a São Paulo, e da capital paulista seguiu por Matão (SP), Prata (MG), Goiânia (GO) e chegou a Brasília; a outra também saiu do Rio em direção à cidade paulistana, mas, de lá, desceu para Capão Bonito (SP) rumando a Curitiba (PR), depois Lages (SC) e, finalmente, Porto Alegre (RS). Além de aferirem o estado das rodovias, acertaram os ponteiros com autoridades do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER, hoje extinto, substituído pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte – DNIT). Preparado o terreno, era a hora de separar as frentes definitivas.

De Romi-Isetta

Jipes, Rural Willys, DKWs, Kombis, Fuscas, Simcas Chambord, Toyotas Land Cruiser, caminhões Mercedes, Chevrolet, International e ônibus da Fábrica Nacional de Motores (FNM) foram divididos em quatro colunas, uma para cada ponto cardeal. Do Norte, saíram os aventureiros que percorreram a Belém-Brasília ainda nos últimos retoques, e percorrem 2.200 km nas mais variadas condições de pista. Sucessivos atoleiros se interpuseram no caminho dos viajantes. Outra que rodou mais de dois mil quilômetros foi a frente Sul, saída de Porto Alegre. Do Leste e do Oeste vieram as duas restantes.

A primeira, que deixou o Rio (embora muitos dos integrantes tenham iniciado viagem em São Paulo), e a segunda, saída de Cuiabá, no Mato Grosso, rodaram 1.100 km cada. A 2 de fevereiro, todos os veículos chegaram à futura capital do Brasil, que seria inaugurada dali a exatos 79 dias. Na chegada, Juscelino – que deixara a última reunião ministerial no Rio de Janeiro para receber os viajantes – se integrou ao braço Leste da Caravana de Integração Nacional. Embarcou numa Romi-Isetta e, acompanhado do major Perpétuo, o visionário que propôs o projeto, dirigiu-se à Praça dos Três Poderes, onde discursaria em cerimônia preparada para a recepção.

É lá no triângulo equilátero que separa os palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário que está, atualmente, um monumento aos desbravadores da primeira demonstração pública e notória do quanto o Brasil se integraria. Representação máxima do projeto JK, a Caravana ainda deu origem à Brasília-Acre, já que os cinco governadores da região Norte estavam no Planalto Central, onde o espírito entusiasmado daqueles brasileiros pulsava em uníssono, integrados.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado