Camilla Sanches
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Uma pizzaria tradicional. Um lugar requintado, por assim dizer. Ao lado, um açougue, um lugar bem popular, por assim chamar. Em volta, farmácias, drogarias, salões de beleza, supermercados, lojas diversas e, sobre elas, algumas residências. Mas o que há de comum entre esses locais?
Na noite da última quinta-feira, esses espaços e seus respectivos públicos pararam para testemunhar a apresentação de um cantor e compositor que soma mais de três décadas de carreira, sólida e em constante ascensão, Zé Ramalho. Arrepiar é só o primeiro sinal que o seu corpo vai dar durante o espetáculo. Depois, você vai se emocionar, vibrar, sorrir, cantar, sonhar, até desabar em lágrimas, com “Quanto tempo o coração, leva pra saber/ Que o sinônimo de amar é sofrer”, reservada para o final da noite.
Mas, antes, os corações se alegraram. Para começar, com quase duas horas de atraso para o horário marcado – o cantor subiu ao palco, sem passar pelos camarins, às 20h50 –, O Que É O que É, de Gonzaguinha: “Viver!/ E não ter a vergonha/ De ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser/ Um eterno aprendiz…”, anunciou Zé Ramalho.
Tristeza e vitórias
Para, em seguida, fazer a plateia (alguns com mais de 50, 60, 70 anos) recordar tempos tristes. De perdas, de lutas, mas de algumas vitórias. Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. A marcha de Geraldo Vandré “Caminhando e cantando/ E seguindo a canção/ Somos Todos iguais/ Braços dados ou não […]. Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer” levou alguns ao choro.
Só então, após a segunda faixa, é que o ídolo cumprimentou os fãs, que o aguardaram pacientemente. Fez questão de enaltecer o projeto, oferecido gratuitamente para a comunidade, há 11 anos, pelo Açougue Cultural T-Bone, e a alegria de estar de volta a Brasília. Os contrastes repetiram-se no restante da noite. Na primeira fila se via o quanto sua música alcançou povos diferentes. Jovens, adultos, idosos, todos.
Até uma passista de frevo com sombrinha colorida gingava na multidão. Telões espalhados pela comercial da 312 Norte tornavam a festa democrática. E a noite teve, ainda, show com o maranhense radicado no DF, Carlos Pial. Mas Zé fez questão de cantar primeiro, para não fazer o público esperar. Respeito.
Este paraibano não é do tipo que fala muito no palco (nem fora dele – o artista não concedeu entrevistas nem antes nem depois do show). Zé faz o que se espera de um intérprete. Canta. Emenda uma música na outra e o público, que o acompanha em coro, agradece e festeja. A calmaria volta a tomar conta da plateia, quando o cantor entoa “E se teu amigo vento não te procurar/ É porque multidões ele foi arrastar”, trechos de Eternas Ondas. Um dos momentos mais aguardados da apresentação veio depois de 45 minutos. Avohai. Com direito a coral de quase 20 mil pessoas, segundo a organização.
É para este povo, o mesmo povo marcado e feliz, de que o compositor fala em Admirável Gado Novo – sucesso de O Rei do Gado, novela de Benedito Ruy Barbosa –, que ele cantou e encantou, fez vibrar e chorar, em frente ao açougue. Homenagear quem ele chama de “colega de profecias”, Raul Seixas, foi um dos pontos altos da noite, com Trem das Sete e Medo da Chuva. E o arrastão quase acontece, quando ele esbraveja: “Quantos aqui ouvem/ Os olhos eram de fé/ Quantos elementos/ Amam aquela mulher…”, de Frevo Mulher. Brasília quase virou corredor da folia, quase virou Salvador em dias de carnaval.
No bis, ou como ele prefere nominar, na saideira, Sinônimos e, de novo, – como se o público pedisse: “Toca Raul” –, Zé Ramalho atendeu e homenageou o baiano com Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás. E, claro, agradeceu aos céus e aos fãs. Cumprimentou a todos e despediu-se. Como um raio. Seu cheiro não ficou nem no camarim.