LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS)
Lady Gaga toca piano. Taylor Swift toca piano. Mas será que tocam bem? Em vídeos disponíveis no YouTube, a alemã Annique Goettler, de 29 anos, avalia o desempenho das duas popstars à luz da técnica clássica. Goettler é concertista e em seu canal “Heart of the Keys” é possível encontrar, com cortes ágeis e muitos recursos gráficos, curiosidades e informações musicais sobre peças famosas, como o “Liebstraum” do húngaro Franz Liszt (1811-1886). “Não falo apenas para especialistas e músicos, mas sobretudo para melhorar a experiência de quem ouve”, diz Goettler em seu canal.
A pianista alemã é parte de um fenômeno que se alastra pelo YouTube e pelas redes sociais. Concertistas, em geral jovens, usam a linguagem da internet para levar a música clássica a um público mais amplo. “Um dos desafios da música de concerto sempre foi o fato de que, para fruir melhor, é preciso ter alguma informação, algum conhecimento sobre o assunto”, diz o brasileiro Leonardo Monteiro de Barros, ex-diretor mundial de marketing da gravadora alemã Deutsche Grammophon. “Esses artistas aproximam os ouvintes do mundo da música clássica, usando uma linguagem de jovem para jovem.”
Um dos nomes mais conhecidos dessa tendência é a violoncelista belga Camille Thomas, de 36 anos. Ela ficou famosa durante a pandemia, quando postava nas redes sociais vídeos em que tocava seu instrumento nos telhados de Paris. As pílulas musicais viralizaram, e ela iniciou uma série em que se apresentava em museus vazios. “Eram dois paradoxos, um artista sem público e quadros sem espectadores”, diz ela num dos vários documentários postados em seu canal no YouTube.
Camille Thomas grava pelo selo Deutsche Grammophon e seu violoncelo é um Stradivarius de 1730. Num de seus vídeos, ela conta que seu instrumento pertenceu ao músico francês Auguste Franchomme (1808-1884), um dos melhores amigos do compositor polonês Frederic Chopin (1810-1849), que morava em Paris. Inspirada pelo fato, Thomas decidiu gravar uma trilogia com peças e transcrições de Chopin para violoncelo. Os álbuns da violoncelista costumam ser temáticos, e ela usa as redes sociais para dar informações sobre o que toca e grava.
“Já faz algum tempo que os músicos eruditos vêm descendo da torre de marfim. No passado eles não gostavam de falar de suas interpretações. Isso foi quebrado nos anos 1960 com o maestro Leonard Bernstein”, diz Leonardo Monteiro de Barros. “Bernstein usava a televisão, que era a mídia da época dele. Os músicos que hoje usam as redes sociais são de certa forma seus seguidores.”
Monteiro de Barros acha que vivemos uma era de ouro para os fãs de música clássica. “Antigamente era necessário comprar discos ou ir a salas de concerto. Hoje a música está em toda parte: no YouTube, nas redes sociais e nos serviços de streaming. É possível assistir a uma estreia de ópera sem sair de casa”, diz. Para o ex-diretor da Deutsche Grammophon que hoje mora entre Hamburgo e o Rio de Janeiro, onde é sócio da Conspiração Filmes a onda de intérpretes produzindo conteúdo para a internet facilita inclusive o aparecimento e a divulgação de novos compositores.
O pianista russo Daniil Trifonov, de 33 anos, acaba de gravar uma obra inédita do compositor americano Mason Bates. Num vídeo para as redes sociais ele explica como Bates que também é DJ — dialoga com vários períodos da tradição musical. Camille Thomas tem excursionado pela Europa executando um concerto para violoncelo escrito pelo compositor turco Fazil Say. Num vídeo, ela explica que a música foi criada em protesto contra a onda de atentados terroristas em solo europeu em meados da década passada.
Os intérpretes de música clássica vêm aprendendo aos poucos a usar os meios digitais. No princípio, eles postavam apenas vídeos de suas performances, em geral peças virtuosísticas tocadas em recitais na hora do “bis”. Os pianistas Lang Lang, chinês, e Valentina Lisitsa, ucraniana, construíram parte de sua fama na década passada graças ao YouTube. Depois de ter vários concertos cancelados por ser apoiadora do presidente russo Vladimir Putin, Lisitsa hoje concentra sua carreira no meio digital ela acaba de lançar uma integral das sonatas para piano de Ludwig van Beethoven (1770-1827) exclusivamente no ambiente do YouTube.
Já a nova geração, como se viu, produz um conteúdo mais informativo e conhece bem a linguagem de cada meio. No YouTube cabem vídeos mais longos. O pianista polonês Greg Niemczuk, de 39 anos, aproveitou a pandemia para gravar análises e curiosidades sobre todas as peças para piano de seu compatriota Frederic Chopin (seus vídeos, assim como os outros citados nesta reportagem, são em inglês com diversos sotaques, e podem ser traduzidos usando ferramentas de inteligência artificial).
Em redes sociais cabem takes curtos ou cenas de bastidores, como as postadas pela violinista francesa Esther Abrami, de 28 anos, que caminha para os 400 000 seguidores no Instagram. É um número eloquente para o nicho da música erudita. Os vídeos de Annique Goettler atingem uma média de 50 000 visualizações. A postagem que critica a postura das mãos de Taylor Swift, no entanto, aproximou-se da casa do milhão. Às vezes os concertistas precisam de um empurrãozinho dos astros da música pop.