LEONARDO LICHOTE
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS)
Rubel estava passando um mês na casa da mãe, se recuperando de uma cirurgia cardíaca pouco depois do lançamento do álbum “As Palavras”, de 2023. Entre partidas de “Driver”, game de PlayStation que jogava na adolescência, ele pegava o violão para passar o tempo. Sem compromisso, o artista começou assim a criar as canções de “Beleza. Mas Agora a Gente Faz o que Com Isso?”, disco que apresenta neste final de semana no Sesc Vila Mariana, em São Paulo.
“Fui compondo sem perceber”, diz Rubel. “Pegava o violão, gravava um negocinho, jogava. No fim de 2023, fui resgatar esses áudios e vi que tinha umas 40 melodias. Escolhi sete para terminar e, no começo de 2024, em um mês, escrevi todas as letras, como se fossem um livro de poesias.”
“Foi um caminho quase oposto ao de ‘As Palavras’, que era um disco muito racional, baseado em muitas pesquisas, em que eu queria objetivamente dizer certas coisas”, diz o cantor. “Agora, deixei o inconsciente falar. Escrevia a primeira frase que me vinha à cabeça.”
Desse exercício emergiram imagens de naturezas diversas. Referências a versos de Aldir Blanc, a cenas de desenho animado, com um gambá sendo levado por um perfume, uma citação solta a Don Corleone ao lado de um livro de Rubem Fonseca. Em meio a elas, sentenças diretas como “você me faz tão bem” ou “tenho tanto pra viver”.
“‘Beleza’ é meio misterioso para mim”, diz Rubel. “Porque me permiti, às vezes, ser distraído, uma palavra que carrega em si o ‘traído'”. A traição, no caso, é ao sentimento de controle do discurso sobre si mesmo. “A gente, às vezes, quer muito ser alguma coisa. E esse disco não é sobre quem eu gostaria de ser. É sobre quem eu sou”.
Rubel se revela em versos como “Ando, não Quero Correr”. É ele mesmo quem destaca esta frase. “Não escrevi nada com um sentido único. Mas agora, vejo que esse verso fala também sobre essa corrida da carreira, do mercado, dos números. Quero sair um pouquinho desse jogo.”
Numa conversa com Tim Bernardes, Rubel conta, o amigo ventilou uma ideia de “fazer um disco sem nem pensar em lançar, algo tão seu que você nem se preocupasse se ele sairia para o mundo um dia”. Foi um dos nortes que o guiou na feitura do novo álbum.
É difícil minimizar nesse processo a experiência da cirurgia para a correção de um prolapso na válvula mitral -o popular sopro no coração. Vislumbrar, aos 32 anos, ter seu peito aberto numa mesa de cirurgia, deixou marcas na relação de Rubel com sua própria existência e com sua música.
“Mais do que a cirurgia, o pré-cirúrgico alterou completamente a minha forma de viver a minha própria vida e a minha relação com o tempo”, afirma o compositor. “Porque acho que foi a primeira vez em que pensei, ‘talvez exista alguma chance concreta de que eu morra daqui a um mês’. Isso faz você entender quais são as prioridades reais da sua vida, sua relação com o trabalho e com o próprio sucesso.”
Veio, assim, uma urgência de pensar menos “na visibilidade, no quanto você é visto, no quanto você é amado, no quanto de ingresso você vende, no quanto de dinheiro você ganha, nessas coisas que ganham uma proporção muito maior do que deveriam na vida de um artista”.
O que restou como foco? As pessoas amadas, o fascínio pela música que o levou a começar a compor aos 12 anos. A beleza, enfim, essa palavra que aparece no título, disfarçada em fragmento de diálogo, coloquialidade -afinal, é essa a natureza da canção, transportar beleza ao nível do chão.
“Reckoner”, canção do Radiohead que ele canta em “Beleza”, é reflexo direto desse fascínio inicial pela música -e remete aos reencontros com o game “Driver”, com a casa da mãe, com a adolescência, enfim.
“Esse disco, ‘In Rainbows’, foi revolucionário na minha vida, marcou minha adolescência. Na hora de gravar o álbum, essa música que eu não tocava há mais de dez anos de repente surgiu como se fosse nova, como se fosse minha, e como se fosse prima de todas as outras do repertório.”
Outra faixa do disco que não é de Rubel é “A Janela, Carolina” -na verdade, é uma versão em português sua para a canção de El David Aguilar. “Eu tinha feito a versão há cinco anos. Ela não cabia no repertório de ‘As Palavras’, mas era perfeita para o ‘Beleza'”.
Rubel descreve “Beleza” como seu disco mais brasileiro. Ele explica que se refere a uma forma de se fazer canção no Brasil, sobretudo a partir das conquistas harmônicas e melódicas da bossa nova. “O que tem de brasileiro no álbum está muito nessa aproximação com essa maneira de escrever harmonia, de achar caminhos que são um pouquinho improváveis, mas que são agradáveis ao ouvido também”, diz o compositor.
“A música brasileira é um patrimônio para a gente defender com unhas e dentes”, afirma Rubel. “Temos que tentar dar continuidade a isso o máximo possível, dentro das nossas limitações. Porque é milagroso. É muito poderoso esse nível de inventividade, de gramática que se construiu aqui”.
Construído sobre cordas, voz e violão, “Beleza” teve como referência maior exatamente dois desses milagres a que Rubel se refere -os discos “Amoroso”, de João Gilberto, e “Fina Estampa”, de Caetano Veloso. Os arranjos orquestrais de Henrique Albino -e de Arthur Verocai, em “Reckoner”- sustentam o legado a que Rubel presta tributo.
“Beleza” é portanto, uma maneira de Rubel exercitar -entre “Driver” e “Amoroso”, entre o sopro no coração e o fragmento solto de uma conversa- o desejo profundamente humano de driblar a morte.
“Essa é a essência do disco: como a gente ganha da morte em vida? Porque a morte vai ganhar da gente em algum momento, inevitavelmente. Mas como é que a gente ganha dela estando vivo? Como a gente faz essa vida ser maior do que a morte?”
BELEZA. MAS AGORA A GENTE FAZ O QUE COM ISSO?
– Quando Disponível nas plataformas de streaming
– Autoria Rubel
– Gravadora Coala Records e Dorileo