Israel Jorge
Especial para o Jornal de Brasília
“O Patinho Feio”, “A Roupa Nova do Rei”, “A Pequena Sereia”… Hans Christian Andersen é o autor, e ele escreveu também “A Polegarzinha”, no século retrasado. Agora, quando olhamos para a arte de capa do lançamento com o mesmo título, do francês Michel Serres (Bertrand Brasil, 2013), um ar de expectativa infantil se mistura ao peso filosófico do escritor. Professor de Stanford e membro da Academia Francesa de Letras, ele é um daqueles raros pensadores que navega bem pelas transições históricas. Uma verdadeira ponte entre gerações, um elo que não será perdido: “Comparando os inconvenientes disso que os velhos ranzinzas chamam de ‘egoísmo’ com os crimes cometidos por ou pela libido de pertencimento – centenas de milhões de mortos –, amo de forma apaixonada esses jovens.”
A expectativa é plenamente atendida. Para os que se identificam com uma linguagem simples e objetiva, a primeira parte analisa bem as diferenças entre o mundo dos jovens de hoje e a vida antiga. A ruptura trazida pela era digital, em constante ebulição (nada melhor do que chamar os modernos digitadores de mensagens com o polegar de polegarezinhos), parece ser ainda maior do que as que foram provocadas pela invenção da escrita e posteriormente da imprensa. E é a partir daí que Serres aprofunda o raciocínio, satisfazendo também os que procuram uma linguagem mais apurada e subjetiva.
Se Montaigne (pensador francês do século XVI) preferia uma cabeça bem constituída a uma cabeça bem cheia, diante do acúmulo inútil de informações que a escrita e a imprensa trouxeram, a situação agora é outra. Aí está a grande conclusão do livro, pois muitas vezes achamos que a questão atual seria a mesma: excesso de informação. Não é. A Polegarzinha, na verdade, não tem mais a sua cabeça. Como na lenda do bispo São Denis, que após ser decapitado levou nas mãos a própria cabeça, o computador substituiu o nosso cérebro. A caixa de ferramentas agora é externa e muito mais poderosa. O que sobrou acima dos ombros, segundo Serres, é a “intuição inovadora e vivaz”. Não precisamos mais decorar, como nas gerações orais, e nem mesmo procurar o livro na estante, como nas gerações criadas pela imprensa. Basta utilizar um buscador online e direcionar as energias intelectuais à invenção, ao inimaginável.
O homem de hoje tem um privilégio inédito, surge em potencial o que eu chamaria de “super-homem vitruviano” (o homem vitruviano é aquele famoso desenho anatômico de Leonardo da Vinci com quatro braços abertos e alongados, que pode ser interpretado como a possibilidade de múltiplas atividades e descobertas em paralelo – algo que o próprio gênio de Leonardo possibilitou como nunca). Não há mais limites. Todas as áreas do conhecimento estão juntas e à disposição de qualquer anônimo, aguardando possibilidades de integração que Edgar Morin (para citar mais um francês) tem vislumbrado.
O livro traz mais. Há reflexões brilhantes sobre o Direito que atrairão advogados (como eu), análises sobre a sociedade e impressões acessíveis sobre a vida. Tudo com metáforas surpreendentes e colorações literárias. Viaje com Michel Serres. Você vai compreender e repetir esta apresentação, que nos faz sonhar ao mesmo tempo em que nos abre portas: “Não me reconheçam mais pela minha cabeça, por seu denso recheio ou por seu perfil cognitivo singular, mas sim por sua ausência imaterial, pela luz transparente que emana da decapitação.”