O escritor Mário Prata levou uma rasteira de um contador, que desviou parte do dinheiro destinado ao pagamento de impostos, foi acossado pela Receita Federal e deu o troco escrevendo. Foi assim que surgiu seu segundo romance policial, Os Viúvos (Editora Leya, 288 páginas, R$ 39,90).
A cena sombria e violenta, quase noir, descrita no primeiro capítulo da obra pode dar uma ideia enganosa. Prata vai na contramão da tradição norte-americana, repleta de detetives durões. Por isso, ambientou a história na cidade onde vive desde 2000, Florianópolis, que tem “muita luz, muita praia, muito verde, estrada larga, gente bonita”.
O drama fiscal vivido pelo escritor é encarnado, no livro, por um criminoso enigmático, auto-denominado E.R.N., que relata seus delitos em e-mails enviados a Fioravanti, detetive particular sessentão habituado a se relacionar com garotas de programa. Além de tentar desvendar a identidade do correspondente virtual, o ex-policial, que também protagoniza o romance anterior de Prata (Sete de Paus), investiga dois seqüestros e o paradeiro de uma prostituta, cuja única pista é uma foto com suas nádegas.
Os Viúvos decepciona o leitor afeito a tramas intrincadas, pistas falsas e raciocínios perspicazes. No afã de denunciar a injustiça que sofreu, o escritor acabou se descuidando da parte propriamente investigativa da história. A participação do auxiliar de Fioravanti, Darwin Matarazzo, é quase insignificante. O modo como os enigmas são solucionados é desconcertante de tão pueril.
Os trechos mais inspirados não são do autor, mas de citações de autores clássicos do gênero policial, como Raymond Chandler e Agatha Christie. Porém, Prata, que também é cronista, mostra que continua com um humor afiado, às vezes ácido, incluindo uma referência ao caso recente do deputado Edmar Moreira, que não declarou ter um castelo entre suas propriedades.
É comum o escritor usar a literatura como válvula de escape para seus desejos. Os Viúvos exemplifica isso de uma forma muito intensa, não é?
O escritor sempre usa a literatura como válvula de escape dos seus demônios, desde a antiguidade. Meu caso, como você falou, foi extremo, né? Pra mim também foi extremo, não só para o leitor. Foi a única arma que me sobrou. E a minha indignação foi mais com a Receita do que com o contador. Meu caso prova mais uma vez que, no Brasil, você é culpado até provar o contrário. Nesse corpo a corpo com a Receita, eu perdi feio. Eu sou um ser humano e a Receita não é mais um ser humano, é uma máquina, computador, e o computador não deduz, não tem sentimentos, não investiga.
Seu ex-contador o enganou e foi você quem acabou pagando por isso. Foi difícil relatar seu sofrimento usando humor?
Isso estava me incomodando muito na época e resolvi escrever primeiro a história do E.R.N. E eu também achava que me livraria da história dele em dez linhas. Mas eu comecei a gostar dele como personagem. Ficou melhor do que eu imaginava. Comecei a gostar daquelas histórias estranhas. Eu queria fazer ele ir até o Paraguai desovar dois carros e comecei a escrever aquilo tipo Google, pesquisando e tal. E vi que estava soando falso. Então resolvi ir até Assunção. Peguei o carro e fui. Três mil e treze quilômetros, ida e volta, saindo de Florianópolis. Nessa viagem, que eu fiz sozinho, incorporei bastante o E.R.N., ao ponto de chegar num posto de gasolina e comprar três CDs piratas, coisa que eu, Mário, jamais faria. Sou contra isso, sei o que são direitos autorais. Mas comprei para sentir como é que era a adrenalina do criminoso, porque é um crime, né? E a coisa foi crescendo. Quando eu vi, mais de 50% do livro tinha o E.R.N. E aí quando eu resolvi que contaria a história dele por meio de e-mails para o Fioravanti, achei que eu tinha resolvido arquitetonicamente o livro. E aí a história do Fioravanti enquanto detetive ficou em segundo plano. Era outra história que eu ia contar, de um serial killer, como foi em Sete Paus.
Agora, o mais incrível de tudo é que, um dia antes de lançar o livro, fui ao Jô Soares e contei essa história. Pô, no dia seguinte, a quantidade de e-mails que eu recebi de gente que passou pela mesma coisa! Pessoas me escrevendo sobre casos de impunidade, de erros de justiça. Me senti meio compensado. Uma velhinha me abraçou numa noite de autógrafos em São Paulo chorando e me agradecendo por ter dito tudo aquilo que eu disse sobre a Receita, porque com ela tinha acontecido a mesma coisa. Ela, que era viúva, tinha perdido um sítio, que ela cultivou com o marido a vida toda, plantou as árvores… A receita pegou e foi a leilão, entendeu? Incrível! Incrível!
Como surgiu a decisão de escrever romances policiais?
É o seguinte. A minha trajetória tem umas décadas. Eu já tive uma década de teatro, outra de cinema. A última foi de crônicas. E de repente comecei a escrever romance. Era uma coisa que eu ainda não dominava, e ainda não cheguei lá não, como na crônica, que eu sei fazer. Romance eu ainda estou chegando lá, vou chegar. Aí escrevi três romances (James Lins, Os anjos de Badaró e Purgatório) e percebi que eles tinham uma coisa em comum: a marginalidade. Os personagens eram meio marginais, beirando o (romance) policial. E aí, há uns cinco anos, resolvi começar a ler policial e fazer um estudo mesmo da literatura policial. Não só ler os escritores policiais, mas livros sobre a literatura policial e biografias de autores. E me viciei nisso, li mais de 500 livros em cinco anos. Estou no meu quarto agora e tem aqui, para ler, tem quase trinta. Aí escrevi o Sete Paus, esse (Os Viúvos) e quero escrever mais três. Esse livro está vendendo muito bem, tenho a impressão de que, em duas semanas, vai estar entre os mais vendidos. Tenho recebido da editora e ele já está entre os quinze primeiros em todas as grandes livrarias. Não vai publicar isso não, parece que estou me auto-elogiando (risos).
Durante sua preparação, você também estudou criminosos e crimes reais?
Não, não. No Sete de Paus, estudei sim. Li três ou quatro livros, não é estudar. Conheço aquela Ilana Casoy, uma especialista brasileira nisso (serial killers), e a gente freqüenta o mesmo spa. A gente já conversou muito sobre serial killer. Ela escreveu dois livros que li, são muito interessantes (Serial Killer – Louco ou Cruel e Serial Killers – Made in Brasil). Mas não pesquisei nenhum caso… Uma época, aqui em Florianópolis, comecei até a guardar os cadernos policiais de jornais para pegar casinhos pequenos, idéias para depois escrever, mas desisti, acho que o gostoso é inventar, é a melhor parte do trabalho.
Quais são os principais desafios de quem se propõe a escrever policiais?
Posso afirmar com certeza… Já escrevi de tudo, né, meu? Só não escrevi bula. Desde jornalismo, crônica, roteiro de cinema, peças de teatro, romances. Agora nada é tão difícil como policial. Tem uma coisa interessante, que eu tenho falado em palestras, a pessoas que querem ser escritoras e perguntem o que têm que ler, eu estou recomendando policial, porque a estrutura narrativa dos bons livros policiais é perfeita. É muito melhor do que qualquer bom romance não policial. A literatura policial foi muito marginalizada até os anos 60, 70, até que pessoas como Jorge Luís Borges começaram a falar… Ele disse que não passava um domingo sem ler policial. Até que Umberto Eco, considerado um dos maiores intelectuais do século XX, escreveu O Nome da Rosa, que é um puta policial. Aí começaram a olhar com mais respeito o policial. Eu olho até com veneração. Pega, por exemplo, um Georges Simenon, criador do inspetor Maigret, ele escreveu 75 romances e 28 contos com inspetor Maigret. Você pega qualquer Maigret e não sabe nem a época em que se passa a história. São romances puros, tem nenhuma informação sobre a época. E a técnica também de enganar o leitor, esse que é o brinquedo, enganar o leitor, dar pistas falsas. Inclusive, o final surpreendente de Os Viúvos me surpreendeu também, eu não contava com aquilo não.
Você cita muitos lugares e características de Florianópolis, até como uma forma de homenagem, não é?
Não só homenagear. A idéia se Florianópolis é o seguinte. A literatura policial, quase toda, é feita na penumbra, em becos. É a literatura noir, como dizem os franceses. As capas (dos livros) são pretas. Fiz questão de a história se passar em cidade com muita luz, que é Florianópolis, é muito aberta, muita praia, muito verde, estrada larga, gente bonita. Foi de propósito, fazer um policial iluminado, no sentido de luz mesmo. Às vezes as pessoas não entendem por quê Florianópolis, e eu sempre respondo: “por quê não, qual é o problema?” Se for virar filme, vai ser genial, porque nunca vi um filme que se passa em Florianópolis.
Quais os bons autores que também misturam humor e policial?
Há bons escritores atuais que trabalham com humor. Não com tanto humor, eu exagero. Um é o Andrea Camilleri, italiano, e um americano, Lawrence Block. Esses caras às vezes têm um certo humor e tal.
Então, você não teve muito em quem se basear?
Não, a literatura tem aqueles detetives durões, do Dashiell Hammett, do (Raymond) Chandler, dos americanos, que depois foram muito bem interpretados (no cinema) pelo (ator) Humphrey Bogart. A era dos detetives durões, né? Não tinha o mínimo humor, era só porrada. Às vezes fazia gracinha, mas humor mesmo não tinha. A própria Agatha Christie, com o Poirot, tinha um certo senso de humor, mas aquele humor inglês, seco. Acho que eu escrachei um pouco (risos).