SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Há uma espécie de encanto nos leitores de “A Chamada”, a nova obra da argentina Leila Guerriero que chega ao Brasil pela Todavia após debutar nas prateleiras da América Latina e da Espanha.
Para alguns, é uma extensa obra dedicada a uma única personagem que não periga acometer o leitor de tédio, por ser tecida por uma cronista de mão cheia. Para outros, é provocação, pois Guerriero traz à luz um enredo pouco debatido que revela contradições na memória histórica argentina, referencial para toda a vizinhança.
“A Chamada” desvenda a vida de uma das mais controversas personagens da época da última ditadura militar no país, de 1976 a 1983 -ou, como diz a própria autora em entrevista, “uma vítima bastante incômoda”.
Silvia Labayru (leia “Labáiru”), nascida em família militar, foi presa em 1976 por integrar a guerrilha urbana dos Montoneros. Grávida de cinco meses, foi levada à Esma, a antiga escola de treinamento militar que funcionou como o principal centro de tortura na Argentina e que hoje é um complexo de museus na mira do atual presidente, Javier Milei.
Ali, Labayru foi torturada. Abusada sexualmente. Forçada a trabalhar para o regime. Deu à luz sua primogênita, que, por uma rara exceção na crueldade do governo ditatorial, foi entregue aos sogros da mãe em vez de ser abandonada, vendida ou apropriada por uma família militar, algo comum no período.
Foi ainda obrigada a se passar por irmã caçula do militar Alfredo Astiz para que eles se infiltrassem em um grupo de religiosas francesas e parentes de desaparecidos políticos fingindo ser, eles dois, irmãos de outra vítima do regime.
A ação terminou no sequestro e assassinato de 12 pessoas, entre elas três mães da Praça de Maio, lançadas ao mar nos chamados “voos da morte”. Astiz passou a ser então apelidado de “o anjo da morte”. Ele foi condenado à prisão perpétua em 2011.
Labayru foi uma rara sobrevivente do regime. Ao conquistar sua liberdade, se exilou na Espanha, mesmo destino de muitos outros perseguidos pelas ditaduras sul-americanas, inclusive antigos amigos seus. Mas o que encontrou foi uma sentença de condenação de seus pares.
Outros militantes e as próprias Mães da Praça de Maio diziam entender que, para sobreviver, Labayru só poderia ter se aliado aos militares. O episódio com Astiz só amargou os ânimos. Antigos amigos de militância se distanciaram.
Não se preocupe com spoilers na descrição acima. Essa é apenas a história publicamente conhecida de Silvia Labayru. O que Leila Guerriero tece em “A Chamada” vai muito além. “O que mais me surpreendeu, de uma forma que me fez sentir bastante inocente, foi como o relato de alguns sobreviventes estava fora do debate público”, diz a jornalista.
Labayru concedeu raras entrevistas antes da publicação deste livro. As maiores, em 2021, ocorreram quando seu depoimento e os de outras denunciantes levaram à primeira condenação de militares por crimes sexuais.
“Deixar que eles nos estuprassem era uma luta pela vida, e não um acordo ou uma negociação por algum benefício”, disse ela naquela ocasião, em conversa com a repórter Sylvia Colombo, na Folha.
Em “A Chamada”, Guerriero compartilha todos os meandros de uma história até então somente conhecida pelo lado condenatório. “Não escrevi o livro para defender ninguém. Nem acredito que isso seja possível. Nem dez livros mudariam a perspectiva do pensamento que alguns têm sobre Silvia Labayru.”
Assim como a obra não faz essa limpeza de imagem, a argentina reconhece que é quase uma válvula de escape para se conhecer uma história até então marcada por estigmas.
“Antes de tudo, ela foi estigmatizada por seus companheiros de militância, com um olhar muito acusatório.” No jornalismo, algo semelhante se reproduziu. “A imparcialidade, como sabemos, é algo que não existe, mas ainda assim me parece que havia faltado escutá-la.”
Ex-militantes e grupos da sociedade civil buscaram inculcar culpa em Labayru. Ela foi chamada de traidora, em especial pelo fato de que havia se infiltrado -forçada- na trama que culminou no assassinato de algumas fundadoras das Mães da Praça de Maio.
O cuidado de não revitimizar os entrevistados foi uma preocupação? Em absoluto, afirma Guerriero. Não apenas porque a autora conhece estratégias respeitosas de entrevista, mas porque notou que Labayru, seus parentes e amigos queriam falar. “Era toda uma gente com histórias muito amplas e que nunca encontrou uma escuta realmente interessada.”
O tempo também é amigo. Guerriero entrevistou Labayru incontáveis vezes em encontros presenciais, ao longo de dois anos. “O tempo é um sinal para o interlocutor de que você está realmente interessado, de que vai dedicar o necessário até que o outro possa dizer o que precisa, que não tem pressa. Que não é, digamos, um mero caçador de manchetes. Também passa a mensagem de que a sua curiosidade é tamanha que você é capaz de sustentá-la por muito tempo.”
Em paralelo às provocações no imaginário histórico, a obra também confronta o atual debate político argentino. Não propositalmente, o lançamento de “A Chamada” coincidiu com um governo avesso às políticas públicas de manutenção da memória, o de Milei, que as enxerga como gastos públicos desnecessários.
Enquanto a obra de Guerriero reforça que ainda há muito que se descobrir sobre a ditadura e que há relatos de sobreviventes que faltam ser escutados, o projeto político reinante afirma que o real impacto da repressão foi inflado no debate público.
Neste segundo ano de gestão, o presidente anunciou que divulgará todos os arquivos antes tidos como secretos da ditadura. Não detalhou como nem quando. Mas disse o porquê: supostamente quer provar que os atos cometidos por grupos guerrilheiros equivaleriam às violências praticado pelo Estado argentino.
Espaços de memória no país são reduzidos. Demissões nos órgãos que conformam o museu e estão atrelados à Secretaria de Direitos Humanos viraram notícia semanal.
“Entendo que essa é uma maneira muito cruel e astuta de asfixiar esses órgãos, arruinando-os de pouquinho em pouquinho, como um Pac-Man, que vai comendo aqui, ali, mas não come tudo de uma vez. Em algum momento será uma asfixia total. O que ficará na memória das novas gerações?”
A CHAMADA
– Autoria Leila Guerriero
– Editora Todavia
– Quanto R$ 109,90 (464 págs.); R$ 79,90 (ebook)
– Tradução Silvia Massimini Felix