FOLHAPRESS
Escrever parece um processo fácil quando Annie Ernaux é a condutora. Ela aborda experiências íntimas que, embora particulares, dialogam com questões universais.
Vencedora do Nobel de Literatura, a francesa narrou seu aborto em uma época que seu país não permitia às mulheres o procedimento; escreveu sobre a morte de sua mãe e a relação com seu pai, com quem criou um distanciamento quando ascendeu em posição social e intelectual.
Acima de tudo, o amor é um dos personagens mais presentes dos livros de Ernaux. Ela amou e, muito provavelmente, segue amando como ninguém. Seus amores são sutis, gentis e sem um pingo de moralidade, o que dá ainda mais autenticidade às experiências.
Em “O Uso da Foto”, seu livro mais recente lançado no Brasil pela editora Fósforo, a escritora remonta uma história de amor por meio de retratos, feitas após encontros que ela tinha com um fotógrafo, o também francês Marc Marie.
Eles tiveram um romance por volta dos anos 2000. Sempre que se encontravam, fotografavam as peças de roupa que ficavam jogadas pelos cômodos quando começavam a transar.
As fotos não têm a estética de uma página do Instagram. São cruas, assim como o sexo, o que as torna ainda mais interessantes. Ernaux conta o que lembra das fotos, descrevendo o contexto, as peças de roupa e onde foram tiradas.
Além de narrar como se sentia no momento em que as fotos foram tiradas, Ernaux também descreve sua leitura ao remontar a cena com uma nova perspectiva, agora livre dos pensamentos que a acometiam quando as fotografias eram o presente.
Marc faz o mesmo exercício, e assim os dois reconstroem 14 encontros por meio de imagens de objetos, roupas e sapatos.
É uma forma de demonstrar o poder da fotografia não só com memórias do corpo físico, que para sempre congelam uma idade. Aqui, o congelado é algo muito mais fácil de esquecer: o sentimento que um dia nutrimos por alguém.
Ernaux conta também como o câncer de mama pautou esse relacionamento, desde a primeira vez em que Marie a viu sem cabelo. O romance deles ocorre no período em que ela está tratando a doença ela passa a evitar eventos sociais e só tira a peruca ao dormir.
O amante de Ernaux diz que ela só teve “um câncer para escrever sobre isso”. “Senti que, de certa forma, ele estava certo, mas até então eu não conseguia. Foi somente ao começar a escrever sobre estas fotos que consegui. Como se escrever sobre as fotos me autorizasse a escrever sobre o câncer. Como se houvesse uma relação entre as duas coisas”, anota ela.
Olhando de fora, parece que Ernaux teve uma vida dos sonhos: é uma mulher bem-sucedida, inteligente, que viveu muitos amores e fala o que quer. Suas obras, porém, mostram que sua trajetória teve rupturas significativas.
É um ato político discutir tabus que a sociedade ainda não conseguiu quebrar, especialmente se tratando do universo feminino ainda que, em “O Uso da Foto”, Ernaux não busque fazer um grande manifesto sobre sua luta contra o câncer.
A autora pincela como isso a afetou sua relação com o sexo, o amor e sua autoimagem. A fotografia não chega a ser maior que o texto na história, mas é uma peça fundamental.
Quem nunca pegou uma foto e se lembrou exatamente do momento em que foi tirada? Congelar o tempo só é possível dentro do rolo de um filme, onde tudo ficou estático.
O USO DA FOTO
- Avaliação Muito bom
- Preço R$ 69,90 (144 págs); R$48,90 (ebook)
- Autoria Annie Ernaux e Marc Marie
- Editora Fósforo
- Tradução Mariana Delfini