Transformar a equidade de gênero em uma estratégia concreta para garantir segurança e ampliar direitos foi o foco do JBr Talks, projeto especial do Jornal de Brasília realizado no Na Praia Festival. O encontro, ocorrido na última terça-feira (12), reuniu especialistas e lideranças de diferentes áreas para discutir soluções efetivas capazes de mudar a vida das mulheres e influenciar políticas públicas.
O debate contou com a participação da oficial de programa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Anna Cunha; da fundadora do Instituto Glória e integrante da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), Cristina Castro; da produtora de eventos e criadora do projeto Conta Comigo, Eli Moura; e da advogada, ex-delegada da Polícia Civil e fundadora do Instituto RevEllas, Patrícia Bozolan. A mediação foi feita por Paula Reis, gestora regional da Amcham Brasil, conduzindo um diálogo que transitou entre protocolos, prevenção, mudança cultural e práticas institucionais.
A conversa começou pelo ponto que, para Patrícia Bozolan, é inegociável: protocolos claros. Ex-delegada da Polícia Civil e fundadora do Instituto RevEllas, ela viu de perto o vácuo entre a lei e a prática. “O protocolo de feminicídio, por exemplo, não existia como norma institucionalizada. Hoje existe, e isso faz diferença”, disse. No instituto que dirige, mulheres, crianças e adolescentes encontram atendimento jurídico, acolhimento psicológico e até a possibilidade de registrar ocorrências sem precisar ir à delegacia. “O processo começa com observação, levantamento estatístico e construção de políticas que se transformam em leis e, depois, em práticas institucionais”, completou, defendendo que capacitações para forças de segurança sejam recorrentes, e não ações pontuais.

Se a fala de Patrícia aponta para o fortalecimento da estrutura de combate à violência, Cristina Castro, do Instituto Glória e da ANTAQ, defendeu que, além de protocolos, é preciso mudar a forma como a equidade e o fato de ser mulher são percebidos. Para ela, a narrativa da vulnerabilidade também deve dar espaço ao debate sobre à valorização da competência feminina. “O fato de ser mulher não deve ser tratado como fragilidade, seja dentro do lar, em uma contratação, na promoção de emprego ou no acesso a cargos de liderança. Ainda há uma diferença salarial expressiva entre gêneros, mesmo quando as mulheres são comprovadamente mais estudiosas e dedicadas”, pontuou.
Ela lembrou que mais da metade da população brasileira é formada por mulheres, responsáveis por cerca de 75% das decisões de consumo no mundo. “Investir na competência feminina é investir em lucratividade e no fortalecimento da sociedade como um todo”, concluiu. Anna Cunha ressaltou que a prevenção começa antes, no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como parte essencial da cultura de paz. Sendo uma oficial do Programa do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), ela destacou que garantir autonomia sobre o próprio corpo é um passo fundamental para territórios mais resilientes e respeitosos. “Quando não sabemos que um direito existe, é mais difícil reagir a uma situação de violência”, afirmou. Anna defendeu que políticas de prevenção falem diretamente com adolescentes e jovens, e que meninos e homens sejam incluídos no diálogo. “Sem eles, dificilmente teremos ações plenamente eficazes”, alertou.
A ligação entre segurança e cultura ficou por conta de Eli Moura, criadora do Conta Comigo, projeto pioneiro que oferece atendimento psicológico imediato para mulheres em situação de vulnerabilidade durante grandes eventos. A iniciativa nasceu em 2015, após um caso de violência sexual em um evento que ela produziu, e evoluiu para um protocolo robusto com equipes treinadas, sala de acolhimento, atendimento a colaboradoras e artistas, além de ações preventivas. Eli lembrou que o projeto também inspirou leis como o protocolo “Por Todas Elas” no DF e o “Não é Não” em arenas esportivas. “A lei nasce da cultura e a influencia de volta. Acolher é também prevenir”, disse. Ela explicou que o atendimento do Conta Comigo é proativo: psicólogas identificam situações de risco, intervêm e acompanham a vítima até que esteja segura. Em eventos como o Na Praia, esse trabalho já chegou a públicos de mais de 120 mil pessoas por dia.

Essa rede de cuidado encontrou terreno fértil no próprio Na Praia Festival, organizado pela R2 Produções. Especialistas em sustentabilidade, os sócios Edu Azambuja, e Kallel Kopp explicam que a parceria com o UNFPA e projetos como o Conta Comigo surgiram da escuta ativa das mulheres. Pesquisas aplicadas pelo Instituto Glória revelaram que a saída do evento era percebida como o ponto mais inseguro, o que levou à criação de iniciativas como o Siga Segura, em que profissionais especializadas acompanham mulheres até seus transportes ou residências. O diagnóstico também motivou ajustes como aumento de seguranças mulheres, parcerias com aplicativos de transporte femininos e treinamentos obrigatórios sobre assédio e empoderamento para todos os colaboradores.
Kallel conta que o número de acolhimentos cresce a cada edição, sinalizando maior confiança das mulheres no serviço, enquanto os casos de violência diminuem cerca de 30% ao ano. “Nem todo atendimento está ligado a um crime; muitas vezes acolhemos situações de vulnerabilidade, como crises de pânico ou excesso de álcool”, afirmou. Para Edu, a integração das ações e a chancela do UNFPA consolidam o Na Praia como referência em segurança. “O objetivo é que, mesmo que uma mulher não tenha a melhor noite da vida dela, com certeza não terá a pior”, resume.
Mais do que um debate, o JBr Talks se transformou em um chamado à ação. Entre protocolos, educação, mudança cultural e escuta ativa, ficou claro que a equidade de gênero é também uma estratégia de segurança.