A quinta noite do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, nesta terça-feira (16), foi sobre representatividade, liberdade, tradição e soberania nacional. Os projetos da mostra competitiva abordaram o Bumba-meu-boi do Piauí, o cangaço do agreste da Bahia e a visão de um jovem durante a ditadura militar.
Antes das exibições, os diretores e colaboradores se emocionaram falando da trajetória para levar suas obras até o palco do Cine Brasília. Em seguida, a plateia acompanhou a exibição dos curtas Boi de salto (Tássia Araújo) e Couraça (Susan Kalik e Daniel Arcades), além do longa Corpo da Paz (Torquato Joel). A noite foi marcada por debates sobre tradição, identidade e o papel do cinema em tempos de opressão.
Bumba-meu-boi do Piauí e o grito pela diversidade
O curta “Boi de salto“, de Tássia Araújo, nasceu de mais de uma década de pesquisa sobre a tradição do Bumba-meu-boi no Piauí. O filme conta a história de Abdias, jovem que sonha em dançar de salto alto em um dos grupos mais tradicionais de sua cidade. Ao ser impedido, ele cria sua própria tradição, afirmando identidade e resistência.
Em entrevista, a diretora, que recebeu família e amigos para a exibição no Cine Brasília, ressaltou a importância de dar visibilidade à cultura piauiense. “A nossa intenção é visibilizar essa cultura tradicional do Bumba-meu-boi que também tem no Piauí, mas que é tão esquecida.”
Ela destacou ainda o simbolismo do salto alto na narrativa. “O salto alto é simbologia de uma ruptura, de uma tradição para uma atualização, para uma cultura contemporânea. Ele é símbolo de um rompimento e de liberdade, quase um grito de resistência para a diversidade cultural.”
Cangaço, amor e escolhas no agreste da Bahia
“Couraça”, que fez sua estreia no Festival, de Susan Kalik e Daniel Arcades, mostra o sertão após o massacre do bando de Lampião. Dois cangaceiros amantes atravessam a caatinga levando uma companheira grávida de volta para casa, enquanto enfrentam dilemas existenciais e afetivos.
Para Arcades, que é do agreste da Bahia, o cangaço carrega significados que vão além da violência. “O cangaço para nós, é sim um lugar simbólico, de luta, de violência também… mas eu acho que a gente já fala de amor em lugares violentos na nossa vida. A gente luta para poder amar o tempo inteiro.”
Ele ressaltou ainda a força estética e revolucionária do tema.“O cangaço é um símbolo muito forte, com uma estética muito forte também, eu acho que ela é revolucionária. Então o objetivo foi pensar o que você faz quando um lugar que te oprime, não te permite ser de determinada maneira, mas mesmo assim você precisa ser. É sobre escolhas.”
Além de revelar sua gratidão à equipe, que gravou por quatro dias no agreste da Bahia, o diretor contou o que aprendeu com o curta. “Quando essa história nasceu, eu queria aprender a ser como os personagens que eu escrevi. Hoje eu me sinto com muito menos medo de amar do que quando comecei a escrever essa história.”
Já Susan Kalik destacou a abordagem decolonial do curta:
“Eu acreditei durante muito tempo que o cangaço eram histórias do banditismo, histórias ligadas a coisas que hoje eu sei que são atravessadas por justiça, por demarcação de território, por violências. Então olhar para o cangaço com esse outro olhar, até porque a gente não olha diretamente para o cangaço com os mesmos personagens que normalmente as histórias e os filmes retratam, a gente olha por um olhar descolonizado e olha também para personagens que normalmente estão mais em segundo plano.”
Ditadura e soberania no sertão paraibano
Encerrando a noite, o longa “Corpo da Paz”, de Torquato Joel, transportou o público para o sertão paraibano dos anos 1960, em plena ditadura militar. A trama acompanha o jovem Teobaldo, dividido entre desejo e repressão, enquanto um pesquisador americano chega ao Centro de Pesquisas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca).
Joel explicou como a obra dialoga com a soberania nacional. “O DNOCS tinha um centro de pesquisa que recebia americanos na década de 60, em plena ditadura militar. E a minha tese no filme é uma licença poética de que eles [americanos] tentaram outras coisas antes, mas o que vinga mesmo é o bicudo dos anos 80.”
No palco, o diretor afirmou que o longa vai além da ficção que retrata. “Corpo da Paz é sobre soberania, sob o território e sob o corpo. A soberania do país está sob ataque.”