“Bugonia” confirma Yorgos Lanthimos como um dos poucos cineastas capazes de transformar o desconforto em poesia cinematográfica. Seu novo longa que chega às telonas nesta quinta-feira (27), funciona como um ritual de confronto, onde cada gesto, palavra e silêncio carrega rachaduras do mundo contemporâneo. Sem jamais suavizar suas obsessões, o diretor constrói um thriller de sequestro que se desdobra menos como um jogo de caça e fuga e mais como um espelho quebrado da nossa própria crise de humanidade.
O filme se ancora na colisão entre Michelle Fuller, a CEO que vive da ilusão da transparência corporativa, e Teddy, o apicultor paranóico que acredita servir a uma missão maior do que ele. A partir desse encontro forçado, Lanthimos ergue um teatro psicológico onde nenhum personagem quer ser lido como realmente é. Emma Stone abraça o artifício dessa ambiguidade e transforma Michelle em uma criatura tão polida quanto perigosa, alguém que domina a língua da empatia artificial enquanto esconde um deserto ético dentro de si.

Jesse Plemons, por sua vez, desaparece dentro de Teddy com uma entrega devastadora. A exaustão física, o olhar febril e a devoção quase religiosa à própria teoria conspiratória o transformam em um protagonista que não busca a simpatia do público. Ele quer apenas ser ouvido, mesmo que sua voz esteja contaminada por delírios, traumas e uma fúria que não encontra descanso. Lanthimos filma esse desespero com a precisão de um entomologista estudando um inseto raro e perigoso.
Há algo profundamente incômodo no modo como o filme manipula nossa empatia. A princípio, é fácil rejeitar Michelle pela soberba corporativa e também descartar Teddy por sua postura de justiceiro de quintal. No entanto, à medida que o cativeiro avança, o roteiro de Will Tracy se dedica a embaralhar os lugares que ocupamos emocionalmente. O espectador é convidado a oscilar entre repulsa e compreensão, como se estivesse preso ao mesmo porão mental onde as crenças dos personagens apodrecem lentamente.

Quando Michelle percebe que resistir não basta, ela adota a manipulação como ferramenta de sobrevivência. Cada conversa, cada provocação, cada pausa estratégica revela uma mulher que aprendeu a dominar ambientes hostis para preservação própria. É nesse jogo verbal que “Bugonia” expõe a fragilidade das estruturas morais. Não há pureza possível quando todos estão dispostos a negociar verdades em troca de algum poder, por menor que seja.
Ao mesmo tempo, Teddy revela uma lucidez que fere. Em meio à sua confusão ideológica, ele fala sobre burnout moral, sobre a máquina de produtividade que engole identidades, sobre a sensação opressiva de viver em um planeta à beira do colapso. Lanthimos transforma esse personagem em um arquivo vivo das angústias contemporâneas, alguém que enxerga os sintomas, mas interpreta as causas de maneira torta o bastante para justificar o abismo que cava para si mesmo.

O filme ganha uma dimensão quase teatral quando o embate verbal entre os dois se torna o motor narrativo. Ali, o tempo parece suspenso. Nada acontece e tudo acontece. As paredes do cativeiro se transformam em palco para discussões sobre ética, corporativismo, alienação e paranoia coletiva. É nesse espaço reduzido que “Bugonia” cresce em densidade e revela a habilidade de Lanthimos em extrair de situações extremas um retrato íntimo das tensões sociais atuais.
Quando a violência finalmente escapa das palavras e invade a ação, o longa muda de pulsação. A narrativa se torna mais urgente e cruel, como se todo o mal-estar anterior estivesse apenas aguardando o momento certo para explodir. Lanthimos não tem interesse em redimir ninguém. As escolhas dos personagens encontram consequências brutais, e cada curva narrativa reforça a sensação de que ninguém ali controla realmente o próprio destino.


A reta final reserva uma das reviravoltas mais desconcertantes da filmografia recente do diretor. Um gesto, uma fala e uma piada amarga reposicionam tudo o que vimos até então e revelam a verdadeira natureza da obsessão de Teddy e a frieza calculada de Michelle. Lanthimos encerra o filme com uma nota que mistura ironia, melancolia e algo quase filosófico sobre o colapso que se instala quando o delírio encontra a impunidade.
Conclusão
“Bugonia” é um filme sobre pânico moral, sobre a fabricação da verdade e sobre as ilusões reconfortantes que sustentam tanto corporações quanto extremistas. Lanthimos não precisa escolher um lado. Ele ilumina os monstros internos de cada um e revela que o maior terror não está no sequestro, na tortura ou na violência, mas na humanidade que insiste em sobreviver dentro do pior de nós. É um thriller que começa como confronto e termina como uma reflexão cósmica sobre o caos que chamamos de mundo.
Confira o trailer:
Ficha Técnica
Direção: Yorgos Lanthimos;
Roteiro: Will Tracy;
Elenco: Emma Stone, Jesse Plemons, Aidan Delbis, Stavros Halkias, Alicia Silverstone;
Gênero: Comédia, Ficção Científica;
Duração: 120 minutos;
Distribuição: Universal Pictures;
Classificação indicativa: 18 anos;
Assistiu à cabine de imprensa a convite da Espaço Z