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Saúde

Nova regra sobre aborto fere direitos das mulheres, avaliam especialistas

A portaria 2.282 MS-GM, sobre aborto, é apontada por especialistas como “perversa”, ao passo que fere, e cria mais uma barreira à autonomia feminina

Agência UniCeub

15/09/2020 15h03

Foto: Morsa Images/Getty Images

Mayra Christie
Jornal de Brasília/Agência UniCEUB

“Essa nova portaria é uma maneira de continuar controlando os corpos das mulheres”. A frase é da psicanalista Thamiris Dias, pesquisadora em saúde da mulher. Editada em  27 de agosto de 2020, a portaria 2.282 MS-GM, sobre aborto, é apontada, por especialistas de diversas áreas, como “perversa”, ao passo que fere, e cria mais uma barreira à autonomia feminina.

A atualização da portaria traz a obrigatoriedade da equipe médica notificar à polícia sobre a violência e a coleta de possíveis provas do crime, como fragmentos do feto ou do embrião. Também exige a assinatura de um termo de responsabilidade por parte da vítima, reconhecendo que sofre riscos como sangramentos, infecções e até de morte, realizando o procedimento. Além disso, deve ser oferecida a ela uma  ultrassonografia, e a vítima seria obrigada a narrar aos médicos os detalhes da violação sofrida e apontar características do criminoso.

De acordo com a pesquisadora Thamiris Dias, esses procedimentos correspondem a mais uma violência que aquela mulher irá sofrer. “Quando você expõe uma mulher ao feto na ultrassonografia, é quase uma tortura. Você está fazendo ela vivenciar novamente aquela situação traumática”, explica a psicanalista. Na opinião da profissional, a atualização do texto fere a autonomia da mulher em detrimento de outra questão: o controle do corpo feminino. “É importante que a gente leia essa portaria com os olhos bem atentos porque ela tem um objetivo de convencer essa vítima a não realizar o aborto e continuar controlando o corpo dessa mulher”, acrescenta.

Direitos

“O impacto disso é realmente dificultar o acesso aos serviços básicos que a mulher/menina tenha direito em decorrência do estupro”, afirma a advogada Amanda Melo, pesquisadora em violência doméstica. A especialista ainda chama atenção para a ilegalidade da decisão. “Há um problema de violação de sigilo profissional dos profissionais de saúde envolvidos no atendimento”, explicou. 

Para advogada, a atitude tenta mudar algo que já está previsto, e relembra que já existem ações de inconstitucionalidade perante o STF quanto o assunto. “ O inciso II do art. 128 possui uma redação muito clara: ‘Não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal’”, enfatiza Amanda.

Assista abaixo a um trecho da entrevista com Thamiris Dias e o que pensa a psicanalista sobre a nova portaria:

Abortos Clandestinos 

Para as especialistas, essas novas regras irão impactar diretamente no aumento de mulheres que buscam a alternativa clandestina no procedimento. O constrangimento e a exposição (em um momento em que a vítima já se encontra fragilizada) seriam alguns dos motivos que influenciariam essas mulheres a não procurarem o sistema de saúde. 

“Por tantas condições problemáticas nessa portaria as mulheres vão se sentir encorajadas a não procurar o SUS, o método seguro. Ela vai procurar o aborto clandestino, ela vai comprar um remédio e vai arriscar a vida dela. Essas mulheres vão continuar morrendo”, afirma a psicanalista.

Dados do Ministério da Saúde de 2018 mostram que, no Brasil, um milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos e levam cerca de 250 mil mulheres à hospitalização. “O aborto ilegal existe no nosso país. Isso é um fato. O problema é o acesso a ele. As mulheres que tem condições de pagar, vão procurar um clínica e vão continuar abortando. Mas as mulheres que dependem do SUS, que são aquelas que não podem pagar, vão estar desassistidas e serão as vítimas dessa portaria”, relembra Thamiris Dias. 

Para Amanda Melo, mesmo com o direito assegurado pela Lei, procurar o procedimento no sistema de saúde já é um processo emocionalmente difícil. A advogada explica que, o sentimento de ameaça é algo muito presente nessas vítimas, principalmente quando os casos de estupro ocorrem em relações familiares, e que a nova portaria seria mais uma barreira na procura do procedimento legal. “Com a imposição de que a polícia seja notificada essas mulheres e meninas podem se sentir ameaçadas e cada vez mais expostas em uma situação de extrema vulnerabilidade e optar pelo aborto clandestino mesmo que seu direito esteja assegurado por lei”, esclarece. 

Aborto Legal

No Brasil, Amanda Melo explica que, o aborto é legal em três diferentes hipóteses: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, em caso de estupro e em casos de fetos anencéfalos. As duas primeiras estão no artigo 128, incisos I e II do Código Penal Brasileiro e a terceira foi a partir da ADPF (Ação de descumprimento de preceito fundamental) nº 54/2012, e ocorreu perante o Supremo Tribunal Federal. No caso do estupro, a advogada ressalta a questão do consentimento.  “Nesse caso, deve ser precedido de consentimento da gestante ou, se menor, do representante legal”, finaliza. 

Mulheres vítimas de violência sexual contam com o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL). Em Brasília, o serviço especializado é oferecido no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria de Saúde, no ano de 2020 o PIGL do HMIB acolheu 10 adolescentes vítimas de violência sexual. Foram realizados três procedimentos de aborto, sendo dois casos de estupro de vulnerável (adolescentes de até 14 anos de idade). Ainda de acordo com a Secretaria, um caso está em processo de acompanhamento psicossocial e os demais casos (pacientes entre 14 e 18 anos de idade) tiveram desfechos diferentes, como abortamentos espontâneos, desistência das pacientes ou não cumprimento dos critérios legais.

Violência e Pandemia

Conforme os dados do Relatório de Análise de Fenômenos de Segurança Pública da Secretaria de Segurança Pública do DF em relação aos crimes contra a dignidade sexual, no primeiro semestre de 2020 nós tivemos 265 registros entre os crimes de estupro e estupro de vulnerável. Esse número, comparado com o do ano passado, mostra uma redução de 77 casos, o que corresponde a 22,5% do total de registros em relação aos crimes de estupro e estupro de vulnerável. Foi verificado também que, desse número de estupros, 60% é de estupro de vulnerável, e 78,8% dessas vítimas são menores de 14 anos e 81,6% são do sexo feminino. Sendo assim, adolescentes e crianças. 83% desses casos ocorrem no interior das residências e 97% dos autores dos crimes são do sexo masculino, e a maioria têm vínculo com as vítimas.

Para a titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher II (DEAM II), Adriana Romana, a pandemia e o isolamento social têm efeito direto na redução desses números, e que não significa, necessariamente, que houve uma redução dessa violação. “A maioria dessas vítimas estão confinadas com o agressor, e com dificuldade de encontrar um caminho para relatar o fato”, explica a delegada. 

Adriana relata que, antes da quarentena, as crianças e adolescente estavam na escola, e esse era um importante canal de denúncia, visto que as crianças vêem no professor, ou no colega de classe, alguém de confiança. “Quando você não tem mais esse contato social, você está prejudicando muito que essa vítima tenha acesso à pessoas que ela possa relatar o que está acontecendo”, expõe. 

Desde o dia 8 de abril, a Polícia Civil do Distrito Federal disponibilizou o registro das ocorrências no âmbito da Lei Maria da Penha, tanto pela internet quanto por telefone e presencial. No entanto, no caso dos crimes de estupro e estupro de vulnerável, que exigem uma conduta mais célere na apuração, o registro ainda é feito apenas presencialmente.

O aumento dessa violência no momento de pandemia refletiu, inclusive, na busca por ajuda psicológica. “Houve uma procura muito maior nesse momento. Muitas mulheres em situação de violência, principalmente doméstica”, relata Thamiris Dias. Para a psicanalista, isso é consequência de muitas mulheres terem perdido suas redes de apoio após o início da quarentena.

“Esse apoio poderia ser no ambiente de trabalho, ou educacional. Como você vai falar com uma amiga ou uma colega, com o seu agressor ali do lado? Fica muito mais difícil. Não é por acaso que fizeram várias campanhas com inúmeras formas de pedir ajuda, como o ‘X’ na mão, por exemplo”, descreve a especialista. 

A delegada atenta para a questão da dificuldade de muitas mulheres em ir até a delegacia, e que por esse motivo, os números reais são ainda maiores que os registros.  “Relatar um abuso, uma violência sexual, é um ato muito delicado e muito complexo. Muitas mulheres tem vergonha de contar os fatos que ocorreram, então algumas delas levam esse segredo para toda vida”, explica Adriana Romana. 

“Elas também não sabem como vão ser tratadas nessas delegacias. Existem muitas cidades que não tem delegacia da mulher, e em muitos casos elas são julgadas, percebem olhares, frases, ter que contar a mesma história várias e várias vezes, como se não tivessem acreditando nela. Não é algo tão simples. Essa mulher precisa estar muito fortalecida pra ir fazer a denúncia”, ilustra Thamiris.

Assista abaixo o vídeo da Delegada Adriana Romana da DEAM II:

Buscando ajuda 

Nas situações de violência, é importante que a vítima saiba para quem recorrer. Além das denúncias, que podem ser feitas pelo 197 (canal de denúncia anônima disponibilizado pela Polícia Civil do DF), pelo disque 180 (no caso de mulheres adultas) e o disque 100 (para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e principalmente abuso sexual), um amparo psicológico é essencial.

A psicanalista Thamiris Dias compõe um coletivo formado por psicólogas e psicanalistas do Brasil inteiro, com o objetivo de atender outras mulheres. O projeto, Idealizado por Manuela Xavier, foi criado no começo da quarentena com o intuito inicial de ouvir e ajudar mulheres em contexto de isolamento social. “O coletivo foi ganhando uma proporção muito grande e hoje a gente atende mulheres em situação de vulnerabilidade não somente em relação à pandemia mas à outras questões também, como vulnerabilidade social, psicológica e situações de violência doméstica”, explica Thamiris. 

O coletivo, intitulado “Escuta Ética”, realiza os atendimentos de maneira virtual, por causa da pandemia, mas quando isso não é possível, as profissionais fazem um encaminhamento ou procuraram um serviço especializado na cidade, pra fazer o encaminhamento necessário para a mulher ser atendida. “O que nós, profissionais da psicologia podemos fazer é oferecer uma escuta acolhedora, sem julgamentos, e que possa fazer essa mulher se fortalecer, não digo nem superar a violência por que é algo muito difícil, mas que ela consiga retomar a vida dela com saúde mental, que é essencial”, finaliza a profissional.

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