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Saúde

Depressão: por que crianças e adolescentes são vulneráveis

“Queria só um pouco de atenção, mas encontrou a própria solidão”. O verso de Tiago Iorc aborda a doença que atinge também faixa etária de susceptibilidades e ebulição de sentimentos

Aline Rocha

11/06/2019 14h13

Aline Rocha e Caroline César
Jornal de Brasília/Agência UniCeub

Quando a alegria e o entusiasmo de uma criança perdem lugar para a tristeza e desinteresse, pode ser que a depressão tenha entrado em cena. A queda no rendimento escolar quase sempre é um sintoma da doença porque os jovens com depressão perdem a motivação para estudar, ficam com o raciocínio mais lento e acabam em situação de isolamento dos colegas e até da família, conforme explicam especialistas. Foi o que aconteceu com uma uma menina de 15 anos que se deixou levar por um grupo on-line que estimulava a automutilação. Mas a adolescente, que estuda no Gama (DF), escolhia concretizar esses pensamentos dentro da escola. . Maria* passou a dividir a experiência com as amigas.e repente, mais de 10 meninas estavam trocando estiletes dentro do banheiro da escola para se cortar.

No Brasil, a depressão atinge 11,5 milhões de pessoas e cerca de 800 mil morrem vítimas de suicídio todos os anos. No mundo, a estimativa é que cerca de 300 milhões sofram com a doença. Por mais que muita gente confunda com apenas tristeza, a depressão é diferente das alterações de humor e respostas emocionais aos desafios do dia a dia.

Com os avanços, a modernidade trouxe ferramentas úteis à vida de todos, mas esses novos itens podem alavancar a depressão, prejudicando a saúde mental de quem os utiliza. As redes sociais servem para, como diz o nome, criar uma rede de contato social via internet, mas muitas vezes pode servir para despertar sentimentos de inveja, comparação e tristeza entre os usuários.

Segundo a psicóloga Flávia Torres, que é analista do comportamento e trabalha com crianças e adolescentes, o uso de redes sociais em excesso na adolescência pode ter influência nos sentimentos de alguém. “Quando começa a seguir pessoas que só postam coisas lindas e maravilhosas nas redes sociais, começa a ver que a sua vida que é ruim, que não faz nada de bom, que todo mundo sai no fim de semana… O adolescente começa a observar isso. Ao mesmo tempo que a rede social vem pro bem, ela vem pro mal”, lamenta.

Transtorno mental frequente, a depressão é uma das principais causas de incapacidade, grande sofrimento e disfunção no ambiente de casa, trabalho ou escola. Em casos mais graves, a doença pode evoluir para o suicídio. Por mais que exista tratamento, menos da metade das pessoas afetadas recebe a medicação adequada.

A depressão faz parte da Mental Health Gap Action Programme (mhGAP), de responsabilidade da Organização Mundial da Saúde (OMS). O programa tem como principal objetivo aumentar os serviços às pessoas que possuem transtornos mentais, neurológicos ou façam uso de substâncias diversas, utilizando o conhecimento e os cuidados de profissionais especializados em saúde mental.

Redes sociais

A psicóloga Flávia Torres destaca que os pais têm um papel importante na prevenção dessa doença. “Os pais têm como ajudar, mas não é restringindo, é estando perto, acompanhando, vendo as postagens e conversando com o adolescente. É preciso encarar que as redes sociais são amigos do adolescente que eles tem que conhecer. Tem que conhecer os sites, o que ele está buscando, quais as informações que para ele são importantes”, ressalta a psicóloga. Ela afirma que o trabalho de combate à depressão não é um trabalho individual com o adolescente, mas sim um trabalho em conjunto com a família.

O psiquiatra Carlos Vieira, que é analista de dados da Sociedade Brasileira de Psicanálise e professor , acredita que é necessário fazer um trabalho em conjunto entre psicologia, psiquiatria e psicanálise. “A medida que a psicoterapia vai avançando, dando condições para a criança ou adolescente se conhecer mais, perceber mais os seus medos, suas angústias,  vai melhorando psicologicamente. O psiquiatra vai diminuindo as doses da medicação até que fique só no tratamento psicoterápico”, afirma.

Ele relata que, na infância dos filhos, é importante que os pais façam terapia ou acompanhamento familiar, principalmente nos casos em que essas crianças passam por episódio de depressão. Ele afirma que há um aumento da recorrência da da doença antes e após os processos de vestibular, já na adolescência, como relata Cristina*.

Assim como a psicóloga Flávia, Carlos concorda que, da mesma maneira que as redes sociais podem vir para o bem, também podem vir para o mal. Um dos sintomas, de acordo com o psiquiatra, principalmente da depressão entre os adolescentes é a “fobia de contato afetivo”. Ele explica que os jovens não estão mais preparados para viverem perdas, sensação de finitude, de mortalidade, de vulnerabilidade na vida. “Por isso os jovens, às vezes, dão o arranjo de achar que as drogas são a grande salvação, é o objeto idealizado que todos procuram. Assim mesmo como ocorrem com as pessoas”, ressalta Carlos.

“Viu toda graça escapar das mãos”

Cristina*, 19 anos, hoje universitária, lembra que sua história com depressão e ansiedade começou no fim do ensino médio. Com a pressão de passar no vestibular e provas como Programa de Avaliação Seriada (PAS) e Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) chegando, Cristina viu a ansiedade surgir na rotina de vida, o que foi agravado com a cobrança, já pela idade, de tirar a carteira de motorista. Ela recorda que assim que iniciou a autoescola, as crises de ansiedade tornaram-se generalizadas. “Comecei a tomar florais e remédios homeopáticos, que ajudaram a aliviar os sintomas, mas não foi o suficiente. A ansiedade começou a ficar intrínseca a mim, eu estava tendo muitas crises e tudo estava ficando muito pesado, muito difícil”, relata.

Ela explica que os sintomas se tornaram visíveis para a família e, com a ajuda da mãe, iniciou tratamento psiquiátrico. “Não queria mais sair, não queria mais fazer minhas coisas, e minha mãe começou a perceber isso. Ela viu que eu estava triste e me levou para o psiquiatra. Lá eu comecei um tratamento, a tomar remédios e sofri muito porque foi muito difícil de me adaptar. Os remédios eram muito fortes”, explica.

Para Cristina, um dos detalhes que fez com que ela se sentisse pior foi a falta de perspectiva que tinha com a vida. Ela acreditava que não havia esperança nem melhora.. “Para mim era dali pro fim, dali para pior”. A universitária não conseguia conversar muito com as pessoas sobre o que estava passando, mas com as poucas pessoas com quem tinha essa abertura, se sentia desconfortável. Ela explica que sentia que estava sendo tratada de modo diferente por pessoas próximas e não da maneira que era antes.

Depois de um tempo que se abriu com essas pessoas, ela recorda de que algumas delas começaram a se afastar e davam como justificativa que Cristina “afetava a vida delas negativamente” e que “não queriam mais ter esse contato comigo”. “Eu acho que essa foi a pior parte, ver que as pessoas estavam desistindo de mim e que não existia perspectiva”, relata. Isso a atrapalhou a concretizar o que havia programado, como um intercâmbio para fazer.

Durante o período em que estava fazendo tratamento com o psiquiatra, Cristina foi recomendada a ficar seis meses de extremo repouso. De acordo com ela, foi praticamente uma internação. Por decisão própria, procurou um novo psiquiatra, com quem fez sessões de terapia e de aplicação de um remédio, ainda experimental no Brasil, que era aplicado três vezes na semana. Com o quadro clínico de depressão muito grave, a universitária explica que o tratamento mudou a vida dela. “Eu melhorei bastante e eu me sinto muito ‘mais eu’, muito mais livre. Não estou mais no buraco que eu estava”.

Foto: Aline Rocha

Hoje, Cristina afirma que, se o tratamento não tivesse sido feito e se não tivesse procurado ajuda profissional, “não conseguiria chegar até aqui”. “Hoje em dia, eu não tomo mais remédio, mas ainda tenho muitas crises de ansiedade, então eu tento não recorrer a remédios, mas muitas vezes não consigo controlar por conta própria, então ou eu tomo remédio ou eu tento fazer alguma medicação, alguma coisa que eu consiga entrar em contato comigo e dizer que aquilo não vai me afetar”.

“Nas aparências todos tão iguais”

A estudante Júlia*, 20 anos, sempre foi ansiosa. Desde criança, a mãe comentava sobre o problema. A comida era um refúgio. “Era e é perceptível na minha relação com a comida. Eu comia demais. Se eu estava feliz, eu comia. Se eu estava triste, eu comia. Tudo eu comia. E eu sempre fui grande, desde bebê. Além de ter a estrutura óssea grande, eu sempre fui gordinha. Ali pela pré-adolescência, isso começou a virar motivo de bullying”, relembra.

Por causa dessa situação, ela acredita que a ansiedade tenha se agravado. Como nunca foi diagnosticada, Júlia teve que aprender a lutar contra os sintomas da ansiedade e de uma possível depressão sozinha. “Foi muito tempo lutando contra isso e me auto conhecendo pra entender os sintomas, entender quando tenho crises de ansiedade, saber como controlar”, explica.

Júlia acredita que, hoje, a ansiedade e a depressão ocorrem em períodos específicos., “Às vezes, tenho umas recaídas. Fico super pra baixo e não tenho vontade de sair da cama, mas consigo superar sozinha. Hoje, tenho minha filha, faculdade, amigos, e (dança) zouk. Aí fica mais fácil”.

Foto: Aline Rocha

Ela explica que a pior parte de passar por tudo isso é o sentimento de impotência, de não conseguir atuar sobre o próprio corpo e “saber que estou naquela situação e preciso sair dela e não conseguir, e não ver graça em nada”. Para Júlia, as crises de ansiedade também são horríveis; “Atacam minha asma e choro compulsivamente. Fico sem ar… É tudo péssimo”, relata.

Júlia conta que chegou a procurar um psicólogo e fez tratamento psiquiátrico mas, quando mais nova, não gostava de conversar sobre o assunto. “Hoje eu já me sinto mais confortável para falar sobre isso e muitas vezes na intenção de conscientizar, de alertar, de ajudar através da minha experiência”, explica.

Ela garante que já tem um controle melhor da situação e não precisa tomar a medicação diariamente. Apenas quando está em crise ou em um dia muito ruim, mas explica que, para aumentar a estabilidade emocional , foi um longo caminho. “A estrada é muito longa, turva, com muitos obstáculos, na posição de me entender para conseguir abstrair as coisas que antes me afetavam”, relata.

“Desconstrução”

Uma em cada 5 crianças com menos de oito anos sofre com depressão e ansiedade, segundo um estudo publicado no periódico Biomedical and Health Informatics. A escola pública Centro Educacional Gesner, no Gama, teve a iniciativa de criar um projeto para atender estudantes que estavam à beira da depressão e precisavam de ajuda.

A unidade de ensino criou o Projeto Asa, que nasceu a partir de relatos de pais e responsáveis que enfrentavam dificuldade em lidar com casos de automutilação por parte dos filhos. A orientadora educacional do, Raquel Guimarães contou que alunas procuraram o serviço de orientação da escola pedindo ajuda. “Eram 12 meninas que estavam se automutilando dentro da escola. Elas tavam trocando estiletes dentro do banheiro da escola e se cortando. Elas procuraram o Setor Orientação Educacional (SOE) e eu fui conversando com elas, e então surgiu o projeto”, relatou.

A orientadora educacional envolveu, ainda, a rede de saúde e a Polícia Civil. A investigação revelou que meninas da escola participavam de grupos on-line com maiores de idade que as incentivaram a se cortar e compartilhar fotos.

Para José de Deus, pai da Maria*, o projeto ajudou a filha de 15 anos a se recuperar. “ Depois desse projeto, ela está super bem aqui em casa. Isso que aconteceu foi no ano passado, no mês de julho, aconteceu esses problemas com ela. Mas, graças a Deus, eu creio que Deus tirou isso da cabeça dela, porque ela aqui em casa é muito alegre”.

A psicóloga Flávia Torres ressalta que a depressão pode ser causada no ambiente escolar porque é a maior fonte de envolvimento social de um adolescente. “Muitas vezes, (a depressão) não surge na adolescência apenas por causa da escola. Às vezes, é um adolescente que, na infância, teve problemas de aceitação ou até mesmo dificuldades de nutrir sentimentos positivos sobre si mesmo. A gente vai distraindo a criança com outras questões e isso passa. Mas, quando chega na adolescência, não tem mais outras questões que chamam a atenção. Então, na adolescência, é a hora mesmo que eclode a depressão”, explica.

Ela reforça a necessidade de um psicólogo presente dentro das escolas, desde a infância, além de acompanhamento de perto dos familiares para que situações de depressão sejam percebidas e possam ser até mesmo evitadas. De acordo com a psicóloga, o trabalho de combate e prevenção à doença deve ser feito em conjunto com o adolescente, a psicoterapia e a família.

“Saiu de cena pra se aliviar”

Estudos do Ministério da Saúde apontaram que o risco de suicídio por depressão é reduzido em 14% em municípios com a presença de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Em Brasília, existe um CAPS especializado para crianças e adolescentes, localizado na Asa Norte.

O centro atende crianças e adolescentes, até 18 anos, em parceria com familiares e/ou responsáveis que estejam passando por algum quadro de crise e/ou sofrimento psíquico que traga prejuízo aos laços sociais e familiares. Crianças e adolescentes, até 15 anos, que estiverem fazendo uso de álcool ou outras drogas também são atendidos pelo mesmo centro.

Casos de : agressividade, vulnerabilidade social, risco de suicídio, uso abusivo de álcool e outras drogas e surtos psíquicos. As formas de tratamento dessas crianças e adolescentes variam de acordo com a necessidade de cada um.

Outro serviço público é o Adolescentro, na Asa Sul, que também presta atendimento individual e para grupos para a faixa etária de 12 a 18 anos de idade. Há um programa com ênfase em transtornos mentais que criou grupos terapêuticos e assistência multidisciplinar em uma abordagem biopsicossocial que leva bons resultados aos jovens. Segundo a gerente do Adolescentro, Ana Paula Tuyama, o grande diferencial do serviço é a realização de grupos terapêuticos também para os pais e/ou responsáveis. “Neles são trabalhadas formas de criar um canal de comunicação na família com amorosidade e respeito mútuo”, afirmou.

O Adolescentro realiza, em média, 5 mil atendimentos por mês, incluindo todas as causas. A gerente do centro afirma que os profissionais de saúde recebem, em média, 10 casos novos por semana de jovens com depressão. O Centro de Orientação Médico Psicopedagógica (COMPP), na Asa Norte, é outra opção de atendimento gratuito.

Serviço – Caps I (Infanto-juvenil) – Asa Norte
Endereço: SMHN, Qd 03, Conjunto 1, Bloco A
Telefone: (61) 2017-1990
E-mail: [email protected]
Horário de atendimento: das 7hs às 19hs de segunda a sexta-feira
Prioridade de atendimento: pessoas com deficiência, idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, gestantes, lactantes, pessoas com crianças de colo e os obesos nos termos da lei.
Acessibilidade: disponível em todos os acessos da unidade de saúde.
Estacionamento: Possui estacionamento público para carros, motos e bicicletas.
O CAPS funciona de maneira gratuita, acesse o site e descubra o mais perto da sua casa e que possa te ajudar: http://www.saude.df.gov.br/carta-de-servicos-caps/

Serviço – Adolescentro – Asa Sul
Endereço:
SGAS 605, lts. 32/33 – Asa Sul
Telefones: (61)3242-1446/3242-1447/3445-7573/3445-7581
Horário de funcionamento: das 8h às 12h e das 14h às 17h
Público-alvo: adolescentes de 10 a 18 anos com transtornos mentais e vítimas de violência sexual
Programas/projetos: entrevista inicial, atendimento de pediatria, ginecologia, psicologia, psiquiatria, neurologia, terapia ocupacional, nutrição, odontologia, oficinas, grupos terapêuticos e atendimento às famílias
Acesso: acolhimento diário da demanda espontânea e encaminhamentos
E-mail: [email protected]
http://www.saude.df.gov.br/adolescentro/

* Nome fictício
** Os intertítulos são versos da música “Desconstrução”, de Tiago Iorc, que trata sobre a depressão. Confira o clipe oficial


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