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Saúde

Após décadas de sofrimento, chinesas que colocaram DIU obrigatório não têm respaldo na Justiça

Os DIUs, ou dispositivos intrauterinos, começaram a ser usados amplamente na China a partir do início da década de 1990

Redação Jornal de Brasília

20/11/2020 12h34

Liang Shuting, Ju Yiwen e Huang Yuxin

Quando os dois DIUs que estiveram em seu corpo por quase duas décadas foram retirados, Lu Ying (pseudônimo) se sentiu renascida. Natural do condado de Pujiang, na província de Zhejiang, no leste da China, Lu teve o primeiro DIU colocado depois de dar à luz seu único filho, em 1993, para impedi-la de engravidar novamente e com isso violar a política do filho único.

Seis anos mais tarde, as autoridades de planejamento familiar de seu vilarejo lhe disseram que o primeiro DIU não estava funcionando e que ela receberia um segundo. Pouco depois, sua saúde começou a deteriorar. Lu passou a apresentar sangramento menstrual por três semanas a cada mês e a sentir a necessidade urgente de urinar a cada duas horas, algo que prejudicou seu sono por mais de dez anos.

A 300 quilômetros de distância, Teng Youxia, em Xangai, também passou décadas sofrendo o impacto da colocação de um DIU. Seu abdômen é distendido, dando-lhe a aparência de estar nos últimos meses de gravidez, e ela sofre fadiga, dores crônicas e hemorragias menstruais intensas. Teng atribui esses problemas a uma remoção mal feita de DIU, 22 anos atrás.

Os DIUs, ou dispositivos intrauterinos, começaram a ser usados amplamente na China a partir do início da década de 1990 para implementar a política do filho único, isso depois de melhorias nos dispositivos terem sido saudados por supostamente causarem menos efeitos colaterais negativos.

As mulheres que recusavam o DIU enfrentavam punições que variavam em cada área do país e em diferentes momentos. Uma punição comum era negar à criança o importantíssimo documento de registro familiar, o “hukou”, o que impedia o acesso a serviços públicos como educação e saúde.

Um dos fatores responsáveis pelos problemas de saúde de Lu, Teng e muitas outras mulheres como elas é o design e a finalidade específicos dos DIUs mais frequentemente empregados na China.

Diferentemente de outros países, onde os DIUs duram alguns anos, na China eles geralmente são usados para coibir a fertilidade materna de modo permanente. Assim, são difíceis de inserir e remover, exigindo um procedimento cirúrgico, em lugar de simplesmente ser puxados para fora por um fio.

Problemas que incluem a expulsão do DIU, a perfuração uterina e inflamações não são incomuns e podem provocar traumas mentais e físicos graves. Wu Shangchun, especialista em controle de natalidade, disse ao Caixin que muitos médicos e mulheres que têm DIUs sabem pouco sobre os dispositivos, e isso causa problemas na identificação de complicações e efeitos colaterais.

Em 1993, Lu, então com 24 anos, teve o DIU compulsório inserido em seu útero. Em 1999, quando foi fazer seu exame semestral obrigatório na clínica de planejamento familiar de seu vilarejo natal, Qiaoxi, disseram-lhe que o DIU havia “escapado” e que ela teria que receber um novo.

As hemorragias começaram poucos meses depois. Num exame no ano seguinte, Lu pediu para o DIU ser trocado ou removido, mas os funcionários negaram a solicitação e disseram que os problemas de saúde que ela estava sofrendo não eram devidos ao DIU.

Mas, em 2017, em outro exame médico, os funcionários lhe disseram que havia dois DIUs em seu útero. O primeiro não havia saído de seu corpo antes de o segundo ser inserido.

Quando o governo do condado lhe ofereceu indenização de 20 mil yuans (R$ 16,2 mil), Lu achou que o valor não era o bastante para compensá-la por 16 anos de sofrimento e decidiu processar o governo.

Teng teve um problema diferente com seu DIU, mas ele também parece ter sido gerado por erro médico.

Ela teve o DIU obrigatório inserido pela clínica de planejamento familiar de sua cidade, no condado de Fanchang, província de Anhui, depois de dar à luz em 1991. Os efeitos colaterais começaram imediatamente, incluindo cólicas dolorosas e hemorragias menstruais intensas e prolongadas.

Em 1998 lhe disseram que a causa dos problemas era que o DIU teria se deslocado alguns centímetros dentro de seu corpo e, por isso, teria de ser retirado cirurgicamente. Mas sua condição não melhorou após a cirurgia –pelo contrário, agravou-se.

Quinze anos mais tarde, uma série de exames realizados em hospitais de Xangai mostrou que partes do DIU haviam permanecido em sua região pélvica e que a remoção tinha sido mal feita. “Por que o médico responsável pela retirada do DIU, anos atrás, não me informou?”, Teng quis saber.

Em janeiro de 2014, cirurgiões tentaram retirar os resíduos do DIU, mas não conseguiram, já que os fragmentos estavam profundamente entranhados no útero de Teng. No ano seguinte, seguindo a recomendação de seu médico, ela decidiu se submeter a uma histerectomia no Hospital Infantil e Maternidade Paz Internacional, em Xangai.

Teng diz que o cirurgião removeu ovários e colo do útero sem seu consentimento, deixando-a incontinente, enquanto o problema das hemorragias crônicas continuou. Mais tarde ela precisou fazer mais uma cirurgia, esta na bexiga. Dessa vez, Teng pediu que o condado de Fanchang reconhecesse oficialmente que suas complicações eram decorrentes do DIU, mas o governo recusou o pedido.

Tanto Teng quanto Lu recorreram a meios legais para buscar justiça, mas seguiram caminhos diferentes, apesar das semelhanças entre seus casos. Nenhuma das duas, no entanto, obteve muito êxito.

Lu registrou uma ação de “procedimento administrativo” contra o governo de Pujiang, sob uma lei que autoriza indivíduos a processar as autoridades por infringir seus direitos.

Mas um tribunal na cidade vizinha de Lanxi decidiu em favor das autoridades, dizendo que Lu não podia comprovar que a inserção do segundo DIU tinha sido involuntária.

Além disso, o tribunal decretou que o alvo de sua queixa deveria ter sido o departamento de planejamento familiar de seu vilarejo, e não o governo do condado.

Lu recorreu contra a sentença no tribunal da cidade de Jinhua, que administra tanto Pujiang quanto Lanxi, mas o recurso foi indeferido. Após várias rodadas de negociações, ela recebeu 120 mil yuans (R$ 97,7 mil) de seu vilarejo. Embora fosse mais do que a indenização inicialmente oferecida pelo governo, 20 mil yuans, era muito menos do que o valor de 1,3 milhão de yuans (R$ 1 milhão) que ela pleiteara.

Teng moveu uma ação por imperícia médica contra a clínica de planejamento familiar de Fanchang, a comissão de saúde de Fanchang e o hospital de Xangai que fez sua cirurgia.

Mas o entrave burocrático no caso dela foi se os procedimentos realizados em nome do planejamento familiar podiam ser classificados como uma prática médica, portanto, se eram ou não cobertos pelas leis relativas a imperícias médicas.

Em 2018, o tribunal de Wuhu, a cidade que administra Fanchang, decidiu que a lei de imperícia médica não se aplica ao caso dela e que, ademais, ela não podia comprovar que os fragmentos metálicos presentes em seu útero eram do DIU. O recurso que ela apresentou junto ao tribunal provincial de Anhui foi rejeitado.

Está longe de ser incomum que ações legais relacionadas a DIUs sejam rejeitadas, porque a mistura dos elementos governamentais e médicos faz com que não se encaixem facilmente em nenhuma categoria legal existente. Segundo pesquisas feitas pelo Caixin, a maioria dos processos envolvendo DIUs movidos por mulheres contra as autoridades foi rejeitada com base nesses argumentos relativos à categorização.

Mesmo quando as ações são aceitas, o ônus da prova é especialmente elevado. Essas ações geralmente exigem a participação de especialistas em planejamento familiar que possam explicar quaisquer evidências relevantes, como, por exemplo, os fragmentos metálicos presentes no corpo de Teng.

Mas as agências de autenticação judicial –órgãos oficiais que avaliam evidências antes de elas serem incluídas em um processo— não têm funcionários especializados em planejamento familiar.

Por essa razão, é muito difícil apresentar provas de danos nesses casos, disse o advogado Zhang Wensheng, que trabalhou anteriormente em instituições médicas.

Além disso, esse tipo de ação judicial geralmente leva muito tempo, mas termina com pouca recompensa. Muitas mulheres não aguentam ficar brigando na justiça por três a cinco anos. Elas acabam cedendo e aceitando uma indenização simbólica.

Essas dificuldades persistem, apesar do reconhecimento oficial de que os DIUs podem causar problemas de saúde graves. Em 1990 e 2011 foram divulgados documentos que classificam os efeitos colaterais mais comuns e explicam como devem ser identificados por funcionários públicos em direrentes níveis.

Segundo os documentos, as mulheres nas quais se identificam complicações relacionadas ao DIU devem receber tratamento gratuito. Apesar disso, especialistas dizem que as complicações raramente são identificadas por meio desse processo e frequentemente o tratamento gratuito não é disponibilizado mesmo às mulheres que conseguem comprovar ter sofrido problemas de saúde provocados pelo DIU.

Wu explicou que muitos lugares ainda esperam que as próprias mulheres paguem por qualquer tratamento ligado às complicações decorrentes do dispositivo. Lu disse não estar satisfeita com a indenização pífia que recebeu, mas não tem ideia do que mais pode fazer, exceto tentar viver da melhor maneira possível e esquecer a dor com a qual conviveu por quase duas décadas.

Teng está menos resignada que Lu e continua sua luta para responsabilizar alguém pelo que lhe aconteceu, mas se sente mal por pedir ajuda à sua família para pagar suas despesas médicas e legais.

As informações são da FolhaPress

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