Num tempo em que o teatro se esconde atrás de pirotecnias cenográficas e iluminações que chamam mais a atenção do que o próprio espetáculo, a peça Os Demônios, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até o dia 8 de junho, é uma volta ao bom e velho teatro da palavra. O texto do russo Fiódor Dostoiévski ganha montagem assinada pelos diretores Hugo Rodas e Antônio Abujamra que privilegia o ator e o texto, sem que o foco saia de cima deles um momento sequer.
A ação se passa na Rússia de 1869 e mostra a tentativa frustrada de Nicolas Stavroguine (vivido por um inspirado e acertadamente denso Alessandro Brandão) de fazer um revolução. Realizam-se ataques que mais parecem atos terroristas a casas e cidadãos, a fome e a miséria se instalam num país caótico, intermináveis discussões são travadas em uma verdadeira guerra de palavras de onde se quer sair cada vez com mais poder concentrado nas mãos de menos gente.
O desfecho, apocalíptico, mostra o fim que acabará tendo a humanidade caso não mude o rumo de seu caminho. Impossível o espectador não se perguntar: é a Rússia mesmo? Estamos realmente no século XIX? O fato de os demônios de outrora ainda serem tão assustadores ainda não os torna mais perversos ainda?
A reflexão sobre os valores que temos – ou que deixamos de ter – enquanto sociedade coletiva esquenta o texto de Os Demônios e o faz assustadoramente atual. Podemos ler o noticiário político e nos deparar com muitos Nicolas ou ainda com vários outros personagens da peça que demonstram a sede do poder, como Piotr Verkovenski (Jonas Schneider), que está disposto a fazer alianças com pessoas que não concordam com seus ideais somente para colocar seu plano de ter cada vez mais poder em ação.
A trilha sonora de André Abujamra e a luz de Dalton Camargos são discretas, porém eficientes. No primeiro caso, ela não atrapalha a concentração do público, que, ávido pelas duras palavras de Dostoiévski, não se dispersa com o som. No segundo, o jogo de luz está ali claramente para somar, principalmente na bela cena em que Nicolas e o religioso Ivan Chatov (Guilherme Reis) têm um acerto de contas verbal com apenas seus rostos e expressões no foco de luz.
Mas em Os Demônios as estrelas mesmo estão no elenco – os mais de 20 atores não saem do palco nem um minuto. Por isso, têm de estar afinados e a homogeneidade conseguida por Rodas e Abujamra é impressionante. Todos têm seus momentos de brilho, com alguns destaques, como Alessandro Brandão, Carmem Moretzsohn (no papel de Maria, uma doente mental e deficiente física que não cai nas armadilhas da caricatura) e Guilherme Reis (que vive o religioso Ivan Chatov com muita contundência). Além de Ada Luana, uma jovem atriz que dá vida a Lisa Drosdov, e da veterana Bidô Galvão, intérprete da mãe de Nicolas, Bárbara.
Quem acompanha o teatro brasiliense de perto já está acostumado ao brilho de grande parte desta turma, que encara Samuel Beckett, Oscar Wilde, William Shakespeare e tantos outros mestres sob a batuta de diretores como o próprio Hugo Rodas, os irmãos Fernando e Adriano Guimarães e outros formadores de atores da capital federal. É o teatro tipo exportação, que levará Os Demônios para o Rio de Janeiro depois da temporada local e mostrará por lá que Brasília não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz arte também.
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