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Política & Poder

Entenda por que Moro não pode atuar como advogado em consultoria com clientes da Lava Jato

O alerta feito pela OAB, porém, não foi motivada pela clientela da consultoria ligada à Lava Jato, e sim para que Moro “não pratique atividade privativa de advocacia” na Alvarez & Marsal

Redação Jornal de Brasília

02/01/2021 12h34

A notícia de que o ex-juiz Sergio Moro foi contratado pela Alvarez & Marsal, consultoria de gestão empresarial que tem em sua cartela de clientes empresas que foram alvo da Operação Lava Jato, como o grupo Odebrecht, provocou polêmica no meio jurídico.

Na sequência, também ganhou destaque o fato de o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo ter enviado notificação a Moro relativa à essa contratação.

O alerta feito pela OAB, porém, não foi motivada pela clientela da consultoria ligada à Lava Jato, e sim para que Moro “não pratique atividade privativa de advocacia” na Alvarez & Marsal.

A advertência se deve à própria configuração da consultoria, que não está registrada na OAB. Dessa forma, qualquer outro advogado que integre os quadros da companhia de gestão empresarial poderia receber a mesma notificação, caso sinalizasse que iria advogar na empresa.

Na ocasião do anúncio da contratação, Moro afirmou em uma rede social que não irá advogar na empresa e não trabalhará em casos que envolvam eventuais conflitos de interesse.

“Ingresso nos quadros da renomada empresa de consultoria internacional Alvarez & Marsal para ajudar as empresas a fazer coisa certa, com políticas de integridade e anticorrupção. Não é advocacia, nem atuarei em casos de potencial conflito de interesses”, escreveu o ex-juiz.

A empresa à época anunciou que a chegada de Moro como sócio-diretor da companhia estava “alinhada com o compromisso estratégico da A&M em desenvolver soluções para as complexas questões de disputas e investigações, oferecendo aos clientes da consultoria e seus próprios consultores a expertise de um ex-funcionário do governo brasileiro”.

Apesar de as regras existentes não vedarem explicitamente a atuação de Moro como advogado em casos em que o cliente seja uma empresa ou pessoa que ele tenha julgado enquanto juiz, especialistas consultados pela reportagem não veem tal atuação como adequada, caso essa venha a ocorrer.
Isso porque tal trabalho poderia envolver conflitos de interesses e uso de informação privilegiada.
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Há prazo para que um ex-juiz possa começar a exercer a advocacia?

Segundo o presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, Carlos Kauffmann, há uma espécie de quarentena para os ex-juízes apenas para atuação no juízo ou tribunal em que eles tenham ocupado cargos.

Nessa situação específica, o prazo é de três anos. Esse impedimento está previsto na Constituição. Assim, não há quarentena para o trabalho de ex-juízes como advogados perante varas ou tribunais em que eles não tenham trabalhado como magistrados.

A advogada Eunice Fumagalli Martins e Scheer, especializada em processos disciplinares, critica essa regra de impedimento temporal e territorial.

“É possível dizer que essa abrangência já não atende, na atualidade, à própria finalidade da regra impeditiva. Com o avanço da tecnologia e a facilidade de comunicação, empresas e pessoas podem expandir indefinidamente suas atuações e relações jurídicas, o que implica na inocuidade da regra aos efeitos a que originalmente se destinava, qual seja, o de evitar o uso de influência do ex-magistrado, inclusive quanto à captação de clientela”, diz Eunice.

De acordo com a advogada, há um projeto de lei de 2018 que visa alterar o artigo 30 do Estatuto da OAB para incluir a proibição de que um ex-juiz advogue em quaisquer circunstâncias que possam configurar conflito de interesses ou uso de informação privilegiada.

Ela destaca, entretanto, que o caminho adequado para tal modificação seria via PEC (proposta de emenda à Constituição), dado que a quarentena de três anos é norma constitucional.

As regras para os juízes também valem para os membros do Ministério Público (promotores e procuradores)?

Não. Mas há um projeto de lei tramitando no Congresso para estender a quarentena aos membros do Ministério Público.

O que é o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB? Quais as suas funções?

Cada secção estadual da OAB possui um Tribunal de Ética e Disciplina. O órgão tem natureza disciplinar e sua função é abrir investigações e julgar eventuais infrações ligadas ao exercício profissional.

Um juiz pode advogar para uma pessoa ou empresa que tenha sido julgada, condenada ou absolvida por ele?

Não há nenhuma regra explícita que proíba ex-juízes de advogarem para pessoas ou empresas que tenham sido uma das partes em processo julgado por ele –a não ser que o caso esteja enquadrado na quarentena prevista na Constituição. Fora essa situação específica, a discussão é mais interpretativa.
Para o conselheiro federal da OAB por São Paulo Alexandre Ogusuku, no plano ético e moral um ex-juiz não poderia advogar neste contexto, pois haveria claro conflito de interesses.

Segundo ele, o artigo 20 do Código de Ética e Disciplina da advocacia vedaria tal atuação ao afirmar que “o advogado deve abster-se de patrocinar causa contrária à ética, à moral ou à validade de ato jurídico em que tenha colaborado, orientado ou conhecido em consulta”.

No caso de um ex-juiz, ele aponta que a “consulta” equivaleria à sentença proferida pelo magistrado.

A advogada Eunice também tece críticas a tal atuação. “A conduta de ex-juiz de advogar para empresa que tenha sido parte em processo judicial por ele próprio conduzido não parece apropriada”.

De acordo com ela, essa é uma questão de foro íntimo do próprio advogado, mas caso um terceiro se sinta prejudicado, seja por conflito de interesses como também pelo uso de informações privilegiadas, poderá ingressar com uma ação na Justiça contra o ex-juiz.

“Já antecipo, é uma prova difícil de ser conseguida: de que ele fez uso da informação privilegiada e o vínculo, a ligação, entre o uso da informação privilegiada e o prejuízo que ele vier a causar a terceiros. É uma prova difícil de ser produzida.”

Eunice discorda, entretanto, que a situação poderia ser enquadrada como infração disciplinar da advocacia pelo artigo 20, pois, afirma ela, tal artigo se refere a conflitos de interesses entre dois clientes do mesmo advogado.
“Teria que fazer um exercício de analogia muito grande para caracterizar o conflito de interesses”, afirma.

Para Eunice, é importante pontuar que, por regular a profissão dos advogados que, em sua maioria, nunca foram juízes, o Estatuto da OAB “não contém previsão expressa que alcance a situação específica que se reporta à condição especialíssima –e rara, se examinada dentro do contexto numérico da advocacia– de ex-juízes exercendo a profissão de advogado”.

Pela falta de previsão expressa, diz Eunice, o único enquadramento possível como infração disciplinar –e ainda assim improvável– seria o item do Código de Ética, que diz: “Constitui infração disciplinar (…) manter conduta incompatível com a advocacia”.

Isso, segundo ela, a depender das circunstâncias e fatos que sejam comprovados e do entendimento dos integrantes do Tribunal de Ética e Disciplina.

Advogados podem atuar em empresas de consultoria?

Se contratado por sociedade que não esteja inscrita na OAB, o advogado ou advogada não pode prestar serviços de assessoria e consultoria jurídicas para clientes dessa firma, pode atuar apenas para a própria companhia. Essa vedação consta no Regulamento Geral da OAB, regramento aprovado por seu Conselho Federal.

Em razão dessa vedação, o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP enviou uma notificação a Moro.

As empresas de consultoria empresarial podem prestar serviços jurídicos?
Não, segundo as regras vigentes, é proibida a divulgação de advocacia em conjunto com outra atividade. Tal proibição consta no Estatuto da Advocacia, que é uma lei federal.

Deste modo, é proibido também, a título de exemplo, um mesmo escritório prestar os serviços de advocacia e contabilidade. Esse também é o caso, portanto, de empresas de consultoria empresarial que prestam serviços em diferentes áreas.

Para Eunice, no entanto, as regras da advocacia neste ponto deveriam ser revistas de acordo com as necessidades do mercado de trabalho atual.
“Advogados vêm atuando em empresas de consultoria empresarial no Brasil e no mundo e não é aconselhável ignorar essa realidade, até para que possa ser adequadamente regulada e fiscalizada.”

Desse modo, ela aponta que impedir a prestação dos serviços jurídicos juntamente com outras atividades acaba por inviabilizar a existência de serviços multidisciplinares como consultorias empresariais, pois o pilar jurídico seria indispensável para tal atuação.

“Não creio que isso seja do interesse da sociedade como um todo, menos ainda sob o ponto de vista do desenvolvimento do país”, diz.

Ela também aponta como negativo impedir que o advogado componha a estrutura dessas empresas prestando serviços jurídicos.

“De duas, uma: ou tal consultoria fica desprovida de um de seus principais pilares ou, então, outros profissionais –tecnicamente despreparados para tal– devem passar a prestar consultoria jurídica, o que, por enquanto é proibido por lei, caracterizando, inclusive, contravenção penal.”

Quais medidas podem ser adotadas pela OAB contra Moro caso ele não siga as recomendações da entidade?
Se não seguir a orientação da OAB-SP, o ex-juiz da Lava Jato poderá ser alvo de um processo ético-disciplinar na entidade.

Em caso de ser aberto processo ético-disciplinar pela OAB contra Moro, quais punições podem ser aplicadas?
A entidade de classe dos advogados pode aplicar penas de advertência, suspensão e exclusão da advocacia.

Folha Press

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