Qualquer que seja o resultado da eleição municipal em Recife, o PT terá de sair dela fazendo uma “DR”. Se a candidata petista, Marília Arraes, perder o segundo turno para o candidato do PSB, João Campos, discutir a relação será óbvio e inevitável. Mas muito provavelmente o mesmo terá que acontecer em caso de vitória. E não apenas o PT pernambucano no caso de Recife. Inicialmente, o senador Humberto Costa (PT-PE) era contrário que seu partido saísse com uma candidatura própria na capital pernambucana. Para ele, seria importante ali ceder a uma aliança com o PSB como caminho até para construir uma aliança mais ampla com vistas à eleição presidencial de 2022.
Ainda que Marília Arraes vença em Recife, Humberto continua mantendo a sua convicção: o PT pode estar trocando o comando de uma cidade pela construção de um projeto nacional mais amplo. Saindo de Recife para o campo nacional, o senador considera que seu partido cometeu equívocos ao privilegiar o resgate da imagem do partido e do ex-presidente Lula em detrimento de uma aliança política maior. Para Humberto, tais equívocos poderão fazer o partido pagar um preço.
No primeiro turno, houve a avaliação de que os eleitores pareciam voltar a escolher nomes e partidos mais tradicionais do campo da política. E buscando também nomes mais no centro do espectro político. Mas agora no segundo turno percebe-se um certo fortalecimento de candidatos do campo da esquerda, mesmo que não vençam as disputas. Como o senhor avalia esse quadro e suas consequências para o futuro?
No primeiro turno, tivemos algo que é consensual. Houve uma rejeição quase que completa ao bolsonarismo. Os que passaram para o segundo turno desse campo agora fazem questão de afirmar uma posição de independência com relação ao presidente da República. E, ainda assim, estão tendo dificuldades para vencer as eleições. Houve e continua havendo um crescimento do processo de rejeição ao governo Bolsonaro. Agora, fica evidente que ninguém foi depositário dessa insatisfação de um ponto de vista mais direto.
Como aconteceu nas eleições municipais de 2000, quando a rejeição ao governo Fernando Henrique Cardoso acabou se transformando em uma grande vitória eleitoral do PT em muitas capitais. O segundo ponto é que o discurso da nova política que produziu algumas vitórias das quais eu creio que a população se arrependeu profundamente – basta ver a situação do Rio de Janeiro, com Wilson Witzel sendo afastado, para ficar em um exemplo. Desta vez, esse canto da sereia não encantou. Mais do que buscar um apoio ao centro, acho que as pessoas buscaram quem tinha alguma experiência administrativa.
E do ponto de vista da esquerda?
Eu não poderia dizer que houve sucesso no primeiro turno. Nós perdemos em alguns lugares relevantes. Estamos fora do segundo turno no Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, nem segundo turno houve. Em Salvador, mesmo com a força do governo estadual, o resultado também foi muito negativo. Mas parece que no segundo turno realmente as coisas vão ter um desenho melhor, principalmente porque o que as pesquisas de opinião estão mostrando, quando tratam da avaliação do governo Bolsonaro, é um crescimento da rejeição. Então, a leitura que se pode fazer é de uma segunda derrota no campo da mesma eleição para o governo Bolsonaro e para o próprio bolsonarismo. E, a depender de alguns resultados, pode haver uma leitura de vitória da esquerda.
Por enquanto, nós temos certeza de que vai haver vitorioso da esquerda em Recife, muito embora o tipo de campanha que está se fazendo por aqui, especialmente no PSB, guarda pouca relação com o que seria a prática efetiva de esquerda em disputas eleitorais. Mas se ganha Manuela D’Ávila em Porto Alegre, se ganha Guilherme Boulos em São Paulo, ou se reduz significativamente essa diferença em São Paulo, se ganhamos em Belém do Pará (com Edmilson Rodrigues, do PSOL), pode, sim, no segundo turno haver uma leitura de uma nova derrota de Bolsonaro e uma vitória que poderá ser maior ou menor desse campo da esquerda.
Um possível fortalecimento da esquerda, mas não necessariamente, apesar de Marília Arraes em Recife, do PT. Não houve bom desempenho em São Paulo. Não houve bom desempenho no Rio. Em Belo Horizonte. E houve fortalecimento de outras forças na esquerda. Isso vai exigir que se repense essa posição de hegemonia do PT no campo da esquerda?
Acho que o PT precisa de fato fazer uma boa avaliação disso tudo. Eu acho que a estratégia que foi adotada pelo PT nestas eleições de 2020 foi equivocada. A estratégia privilegiou uma tentativa de resgatar a imagem do PT e a imagem do próprio presidente Lula, embora na prática se tenha visto que em cada campanha cada candidato foi defender as suas ideias, o seu projeto. Ninguém ficou na prática discutindo o que o PT fez no governo ou combatendo a Lava Jato. Eu era defensor – e continuo achando que estava correto – de uma política de alianças mais ampla. Isso teria nos poupado algumas situações, como é o caso do Rio de Janeiro, embora ali até se tenha tentado com Marcelo Freixo. Mas em São Paulo o PT claramente errou (ao manter a candidatura de Jilmar Tatto). E em outros lugares também. Acho que o PT precisa fazer esse balanço.
O senhor defendia essa política de alianças mais ampla. Ela é possível para 2022?
Acho que a depender dos resultados das eleições municipais, a ideia de uma aliança mais ampla para 2022 perde força. Primeiro porque alguns partidos precisam se apresentar com o objetivo de cumprir a cláusula de barreira – casos do PSOL e do PCdoB. Avalio que a gente possa ter uma candidatura que envolva PDT, PSB, alguns outros partidos como o PV, a Rede, talvez o Cidadania, em torno do nome de Ciro Gomes, que pode inclusive o DEM, o que pode lhe dar uma musculatura que até agora ele não teve em nenhuma eleição. O PSOL, pela necessidade de fazer o cumprimento da cláusula de barreira e também pelo fato de que teve um crescimento agora muito significativo, já pode talvez seguir um caminho próprio. E, para o PT, a possibilidade também de um caminho muito mais sozinho no primeiro turno. Acho muito difícil a possibilidade de uma aliança com Ciro Gomes no primeiro turno. A discussão se passa agora em saber quem terá capacidade maior de aglutinar forças em torno de si. O PT precisa desde já traçar o seu próprio caminho. Seria necessário tomar essa decisão com mais brevidade. Acho difícil o PT apoiar uma candidatura de outro partido. Não acredito que a base aceitasse isso.
Mas, pessoalmente, o que o senhor acha? O PT poderia ficar fora para apoiar uma outra candidatura?
Acho muito difícil. Veja o caso de Ciro. Pode ser uma aposta no escuro. Até porque, pelo temperamento dele, a gente nunca sabe como termina. Outras possibilidades, como Flávio Dino, a gente não sabe de fato qual a viabilidade dele com a estrutura partidária que ele tem. Acho muito difícil, então. Acho que o mais provável é o PT ter uma candidatura. Até porque se a Justiça libera os direitos políticos de Lula, ele é o candidato. Eu não tenho dúvida. Ele vai brigar para isso, e se comporta como tal. E, se não libera, o PT ainda é um partido que tem, além de uma estrutura melhor, vários nomes. Agora, no caso do PSB, essa eleição aqui em Recife está criando um caminho sem volta para um entendimento, seja em termos locais seja em termos nacionais.
No caso específico de Recife, o senhor era inicialmente favorável à manutenção da aliança com o PSB. Tomado esse caminho da candidatura própria, o entendimento com o PSB de fato não tem mais volta?
Acho que não tem mais volta. A eleição tomou um caminho de radicalização que normalmente acontece quando você opõe a esquerda e a direita. O tipo de argumento que se está usando é um tipo de argumento muito atrasado. Isso cria uma dificuldade. O PSB que realmente mantinha um diálogo mais próximo com o PT era o PSB de Pernambuco. De modo que esse afastamento aqui eu acho que elimina um entendimento maior, mais global, em termos nacionais.
Por que incialmente o senhor não era favorável à candidatura própria em Recife e como está sua posição agora?
Eu não era favorável por essas razões que estamos discutindo aqui. Porque sabia que o valor para o PSB de vencer as eleições em Recife era muito grande. Eu achava que o PT não deveria arriscar a manutenção dessa aliança nacional para voltar a presidir o país por conta do comando de uma cidade. Na minha avaliação – e eu continuo achando que estava correto -, nós estamos trocando uma cidade pelo risco de um problema em um projeto nacional. Se ganhar é bom, terá sido uma vitória. Mas, na minha avaliação, isso rompe definitivamente qualquer possibilidade de um entendimento nacional com o PSB. Esse era o sentido maior da minha avaliação. É verdade: eu também achava que nós não teríamos um espaço político para uma candidatura do PT. Nisso aí, realmente a minha avaliação se mostrou equivocada, Marília Arraes se mostrou uma ótima candidata, muito talentosa, muito guerreira. Mas eu continuo achando que a perda não justifica a vitória que vamos ter. Pior ainda se nós não ganharmos. Agora, eu sou uma pessoa de partido. A partir do momento em que a decisão nacional se tornou definitiva, eu cumpri essa decisão, votei na candidata. Não tive uma participação mais direta porque a pandemia não me permite. Eu tenho saído muito pouco de casa. Participei de dois atos da campanha, um deles remotamente. Mas tenho apoiado. Com mais razão ainda depois da campanha que o PSB está fazendo agora, que elegeu objetivos completamente equivocados. Acendeu um antipetismo que não parece estratégia de quem quer construir para a frente um caminho. Um nível absolutamente rasteiro, que só consigo equiparar à campanha de Bolsonaro em 2018 e à campanha de Fernando Collor em 1989. Eu não sei como essa relação vai perdurar em Pernambuco. Não sou eu quem decide isso, existe um diretório estadual que debate essas questões. Nós participamos do governo do PSB, então não podíamos tomar uma decisão neste momento, mas não vejo como essa relação continuar.
E no âmbito interno, diante dessas suas posições iniciais, a coisa está pacificada?
Eu creio que não. É uma avaliação que vamos ter que fazer. Nós vamos ter que conversar se houve de fato um desejo de agregar, de construir unidade. Vamos ter que ver isso aí depois.
Há uma discussão que alguns colocam, não necessariamente partidária, em torno de candidaturas, mas da necessidade de uma união, de um entendimento mais amplo no campo de quem defende a democracia. Algumas pessoas que estão no campo do centro, até mais conservadoras, não do campo da esquerda, andaram externando isso recentemente: o governador de São Paulo, João Doria, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, algumas vezes o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Nesse sentido, o senhor acha que possa haver algum entendimento?
Esse tipo de conversa é sempre importante que exista. Mas isso precisa sempre ser bem delimitado. Embora essas forças possam ter um nível de divergência com o governo Bolsonaro no que diz respeito à democracia, à independência dos poderes, ao risco de uma escalada autoritária, por outro lado há uma profunda identidade com o programa econômico do atual governo. Essas conversas podem e devem acontecer no campo do debate sobre a liberdade, a democracia. Mas até mesmo nesse campo as saídas propostas não conseguem ser, pelo menos por enquanto, comuns.
Nós achamos que não há possibilidade de se encontrar uma saída a curto prazo com Bolsonaro no poder. Por isso, estamos no campo de setores que têm defendido o impeachment do presidente da República. Enquanto o PSDB e o DEM não querem esse caminho, talvez porque considerem o risco de se abrir um espaço para o PT, que eles continuam a considerar um adversário mais perigoso que Bolsonaro.
Além de senador, o senhor é médico, psiquiatra e já foi ministro da Saúde. Como o senhor avalia as posições do governo sobre a pandemia e a evolução da doença?
O quadro é preocupante. Nós, de fato, já estamos vivendo uma segunda onda, e as medidas para a prevenção para o agravamento desse quadro serão mais difíceis de ser tomadas agora, dado todo esse trabalho de sabotagem que foi feito pelo presidente Bolsonaro e por seu governo. Será difícil também o enfrentamento definitivo, que é a vacinação, porque o governo, para variar, também partidarizou debate e não vem tomando as medidas necessárias que precisam ser tomadas previamente para garantir o acesso da população à vacina. Hoje, nós não sabemos de quem nós vamos comprar, e, na verdade, nós deveríamos comprar de todos, porque todas as vacinas serão necessárias e não serão em número suficiente para vacinar a população como um todo. Nós precisamos definir como vai ser esse processo de distribuição. A depender da vacina, vamos precisar adquirir equipamentos para que os municípios possam fazer o armazenamento adequado. Provavelmente, vamos precisar contratar pessoal para realizar todo esse trabalho da vacinação. E até o presente momento, nada disso começar a ser feito. Então, nós podemos nos ver daqui a pouco numa situação a que sejamos obrigados a apelar para a improvisação, que tem sido a tônica até agora. E não é por acaso que o Brasil é o segundo país em número de mortes, apesar de ter um sistema público da amplitude e da qualidade do SUS. Eu vejo esse quadro com muita preocupação, diria até com pessimismo.