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Política & Poder

À sombra dos governadores

Com a inação de Bolsonaro, líderes estaduais assumem protagonismo contra o coronavírus

Rudolfo Lago

23/03/2020 6h11

O Brasil, cada vez mais, parece se proteger à revelia do que faz e pensa o presidente Jair Bolsonaro. Pesquisa divulgada ontem pelo Instituto Datafolha mostra que a esmagadora maioria dos brasileiros apoia as medidas de isolamento definidas pelos governadores dos estados. Para 73% dos entrevistados, a solução para evitar a contaminação pelo novo coronavírus é a quarentena imposta.

Os números ainda são mais expressivos quando se trata do apoio à proibição de eventos específicos. A suspensão das aulas nas escolas é apoiada por 92%. Para 94%, não se deve agora fazer viagens internacionais. A suspensão dos campeonatos de futebol tem o apoio de 91%. Qualquer evento com mais de cem pessoas deve ser proibido, para 95%. Fechar shoppings: concordam 84%. Deixar de ir a missas e outros eventos religiosos: assim concordam 82%. Ou seja: quase ninguém partilha da opinião do presidente de que se trata de “uma gripezinha”.

A inação de Bolsonaro nos últimos dias, seus movimentos erráticos com relação à pandemia do novo coronavírus, fizeram os governadores do país assumir uma posição de comando do processo.

À frente de todos, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Quando outros estados ainda discutiam o que fazer, Ibaneis saiu à frente. Fechou escolas e outros espaços públicos e começou a tomar providências para o isolamento das pessoas a partir do dia 12 de março. Para alguns, as primeiras providências pareceram exageradas. O avanço acelerado da doença em todo o país provou que Ibaneis tinha razão. Outros governadores seguiram o mesmo passo. O país está hoje trancado dentro de suas casas. Mas esse parece ser o caminho mais indicado para minimizar os efeitos da tragédia. Mesmo com os efeitos danosos que virão de uma paralisação da atividade econômica.

Ao perceber a perda de espaço diante das ações dos governadores, Bolsonaro tentou reagir na semana passada. Editou uma Medida Provisória para regular, na esfera federal, os poderes dos estados na decisão de fechar estradas, fronteiras e comércio. Ensaiou tornar tais controles menos rígidos. Ainda que conseguisse, a pesquisa Datafolha demonstra que qualquer tentativa agora de flexibilizar restrições será inócua. A essa altura, independentemente do que virar ou não decisão legal, as pessoas não sairão de suas casas.

Enquanto os governadores se mexem, e suas ações são replicadas pelos prefeitos de todo o país, o presidente segue no sentido contrário. “É a visão dele”, tenta amenizar Ibaneis Rocha, em avaliação para o Jornal de Brasília.

“Ele, como nós, tem o direito de pensar diferente. Eu pessoalmente estou tratando do assunto sem politizar, até porque política não deve se misturar com problemas de saúde graves como esse”, diz o governador.

Ibaneis, porém, está seguro de que suas ações são as corretas.

“O que está em risco é a saúde da coletividade, e os exemplos mundiais infelizmente demonstraram que qualquer lapso de ação pode levar ao desastre”, diz ele.

Os exemplos mundiais, de fato, demonstram que o caminho para evitar o coronavírus está na ausência de contato físico entre as pessoas.

A maioria dos governadores do país está alinhada com o que vem sendo feito no DF. Reuniões diárias com o secretariado têm acontecido em quase todos os estados. Mesmo entre aqueles que estiveram próximos de Bolsonaro nas eleições de 2019. Caso, por exemplo, do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). No dia 15 de março, quando manifestações de apoio ao governo aconteceram à revelia dos avisos de que deveriam ser evitadas, Caiado saiu às ruas para tentar explicar à população o risco que corriam. “Vocês tem que entender uma coisa só: eu sou médico antes de ser governador”, disse Caiado aos manifestantes, usando um microfone. O governador de Goiás é um renomado ortopedista. Vocês precisam ter responsabilidade de não fazer com que as aglomerações provoquem a disseminação do vírus”, pediu, apesar das vaias.

O tempo mostrou que Caiado estava certo. No mesmo dia, Bolsonaro resolveu descer a rampa do Palácio do Planalto e cumprimentar as pessoas que se manifestavam. A estimativa é que tenha tocado em pelo menos 200 pessoas. Pelas normas sanitárias, ele deveria estar em isolamento, uma vez que tinha acabado de chegar dos Estados Unidos junto com uma comitiva na qual 22 pessoas estão hoje contaminadas com o novo coronavírus.

Diante do quadro de pandemia, Bolsonaro parece enxergar o avanço da doença e as providências dos governadores pela ótica política. Para ele, o que os chefes dos estados vêm fazendo seria uma tentativa de desgastá-lo visando às eleições de 2022.

Um desgaste que vem  de longe

Para o cientista político André Cesar, da Hold Assessoria, desde o ano passado já se verifica um processo de perda de protagonismo do presidente diante da ação de outros atores políticos. “Esse processo se iniciou com o Congresso, a partir de Rodrigo Maia. E, agora, por essa inação e esses movimentos erráticos com relação ao novo coronavírus, chega aos governadores”, observa. Na avaliação de André Cesar, Bolsonaro tem razão em temer 2022. De fato, esse processo deverá ter reflexos na sua sucessão. “É interessante que o processo intensifica-se na sua faixa de eleitorado, pela direita, com Witzel e Dória”.

Segundo André Cesar, a tentativa de reação com a MP que tenta trazer de volta para a esfera federal medidas restritivas pode ter chegado muito tarde. “Em política, tudo é possível. Mas a verdade é que os governadores largaram muito na frente dele. Ele patinou na largada, e é como se os governadores agora fossem Lewis Hamilton e Valteri Bottas de Mercedes-Benz e ele tentasse recuperar o terreno pilotando uma Sauber”.

“Com exceção do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não parece haver capacidade gerencial do governo para atacar o problema”, continua André Cesar.

Assim, o cientista político acha pouco provável que a essa altura Bolsonaro possa tomar alguma medida mais autoritária, como, por exemplo, decretar estado de sítio. “Isso tem de passar pelo Congresso. E não parece que hoje ele tenha condições de fazer isso passar”.

André alerta para movimentos que acontecerão esta semana. Os governadores das regiões Sul e Sudeste, que formam o Consórcio de Integração Sul/Sudeste (Cosud) terão uma reunião. E deverão conversar de forma integrada com seus colegas do Norte e do Nordeste. Também está prevista a publicação da próxima rodada da pesquisa CNI/Ibope, que mede a popularidade governo. “Fala-se que a popularidade pode cair somente aos núcleos mais fieis do bolsonarismo. E eles não são suficientes para Bolsonaro andar na contramão do planeta”, avalia André Cesar.

Saiba mais 

Dois governadores do mesmo campo conservador que Bolsonaro – João Dória, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro – colocam-se como alternativa à sucessão. Em entrevista à rede de televisão CNN, no sábado, o presidente acusou o golpe. Chamou o governador de São Paulo de “lunático” pelas medidas de restrição que vem implementando.

“Esses governadores, poucos, que me criticam o tempo todo, dizem que não tenho liderança. Digo a esses governadores: as eleições de 2022 estão muito longe ainda para vocês partirem para esse tipo de ataque infundado em cima do chefe do Executivo federal”, reagiu.

“É imperdoável que minimizem dizendo que é uma gripezinha”, responde Dória. “Vejo com decepção e tristeza. Como governador de estado, gostaria de ter um presidente que liderasse o país em uma crise como essa. Na ausência dessa liderança, governadores e prefeitos fazem o que Bolsonaro não consegue fazer”, resume o governador.

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