CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Em meio à rotina exaustiva de consultas, exames e sessões de quimioterapia, Maria José Duarte Diniz, 53, recebeu um email que a paralisou: seu plano de saúde seria rescindido em 60 dias. Ela está em tratamento contra um câncer de mama, diagnosticado no ano passado.
“Fiquei apavorada. Pensei: como vou fazer agora? Ir para o SUS no meio da quimio? Parar meu tratamento? Foi desesperador”, conta ela, beneficiária de um plano coletivo empresarial da Hapvida NotreDame Intermédica, a maior operadora de planos de saúde da América Latina.
Maria José diz que passou dias ao telefone tentando entender e reverter a decisão. “Ninguém na operadora sabia explicar. Diziam que era ‘reestruturação interna’. Foi um descaso enorme.”
Ela recorreu à Justiça e obteve uma liminar que suspendeu o cancelamento do plano, mas afirma que a operadora não acatou a decisão. “Na segunda [8], tinha sessão de imunoterapia que foi suspensa porque o plano ainda aparecia como cancelado.”
O médico Mauro Irizawa, 71, passou por uma situação semelhante com a mesma operadora. Ele enfrenta um câncer de pulmão e, após a cirurgia, iniciou um tratamento com quimioterapia oral, com custo mensal em torno de R$ 33 mil.
No fim de outubro, porém, o filho de Irizawa diz ter recebido um email de aviso de cancelamento do plano coletivo empresarial que cobre o pai e a mãe desde 2023, ao custo de R$ 6.500 mensais. “Meu pai está em tratamento contínuo, sem previsão de término. Eles sabem disso”, diz o filho, Ian Irizawa.
A família também recorreu à Justiça e obteve liminar garantindo a continuidade da cobertura. Mas, segundo o filho, a operadora não estava cumprindo a liminar. “O plano continua cancelado”, afirmou Ian na terça-feira (9).
Segundo ele, a situação fragilizou ainda mais o pai. “No começo nem contamos para ele para evitar mais estresse. Depois ele precisou saber. É desumano impor esse peso a um paciente oncológico.”
Na quarta-feira (9), a reportagem procurou a Hapvida NotreDame Intermédica, relatou sobre os dois casos e no mesmo dia a empresa entrou em contato com os dois pacientes para informar que seus contratos estavam ativos.
Em nota enviada na quinta-feira (10), a operadora reforçou que os contratos de Maria José e Mauro Irizawa estão ativos e que não houve interrupção nos respectivos tratamentos oncológicos. “A empresa reforça que mantém contato direto com ambos os beneficiários por meio da diretoria de acolhimento, a fim de prestar toda a assistência necessária e assegurar a continuidade e a regularidade da atenção à saúde.”
Os casos dos dois pacientes oncológicos não são exceções. Usuários de planos de saúde pelo país têm enfrentado avisos de cancelamento de planos, terapias negadas e serviços descredenciados durante tratamentos de câncer.
Queixas feitas à ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) referentes ao tema câncer triplicaram nos últimos cinco anos, passando de 3.391, em 2020, para 9.693, em 2025 (até novembro). No período, as reclamações sobre rescisões unilaterais envolvendo o câncer também tiveram uma escalada. Passaram de 75, em 2020, para 188 (até novembro). Ano passado, foram 286.
Em nota, a ANS diz que as queixas têm como base os relatos dos beneficiários, sem o exame de mérito sobre eventual infração da operadora, que só é feito após a análise individual das demandas. A agência afirma que também atua na intermediação de conflitos entre beneficiários e operadoras.
Relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), divulgado em novembro último, mostra que, entre agosto de 2014 e julho de 2025, foram ajuizadas 123 mil novas ações contra planos de saúde na primeira instância e outras 108 mil na segunda. São Paulo concentrou 93 mil ações.
Desse total, tratamentos médicos e remédios respondem pela maioria das ações (69%). Em uma amostra de 1.992 ações, 16,5% tratavam de demandas específicas de pacientes oncológicos, representando 329 casos. O percentual é maior do que o de ações envolvendo o autismo (10%), com 202 casos.
Diversas decisões judiciais já reiteraram que o plano não pode cancelar o contrato de um paciente em tratamento oncológico. Os argumentos se baseiam na lei 9.656, que proíbe a interrupção de cobertura durante internação. O entendimento é que o tratamento equivale, na prática, a uma internação prolongada.
Segundo a advogada Renata Vilhena, do escritório Vilhena Silva Advogados, tem sido cada vez mais comum o cancelamento logo após o diagnóstico ou no início da quimioterapia. “É um movimento para afastar pacientes que passaram a gerar custo”, diz.
A consequência direta é a corrida ao Judiciário. A taxa de sucesso das ações que pedem a manutenção do plano durante o tratamento de câncer é de 87%, em média. “O Judiciário é muito firme nessas decisões.
Os tribunais entendem que interromper cobertura oncológica é violar o direito à vida”, explica. Para ela, há fragilidade da regulação, e a ANS tem falhado em coibir práticas abusivas.
Em nota, a ANS diz que planos de contratação coletiva (empresarial ou por adesão) podem ser rescindidos pela operadora após o período de vigência inicial (12 meses), desde que observadas as condições contratuais e a notificação prévia ao contratante. Nesse caso, o contrato como um todo é cancelado e todos os beneficiários excluídos do plano.
Já caso de cancelamento pontual de um beneficiário de um contrato coletivo, a operadora só pode exclui-lo em casos como fraude, perda do vínculo do titular (demissão, por exemplo) e inadimplência. A agência reforça que a legislação do setor de planos proíbe a seleção de risco, sendo ilegal a recusa de adesão ou a exclusão de beneficiários por motivo de idade, deficiência ou doença preexistente.
Estudo publicado pelo IESS (Instituto de Estudos da Saúde Suplementar) mostra que entre 2020 e 2024 o volume de ações contra planos de saúde aumentou 112%, alcançando 298,7 mil novos processos no último ano, o equivalente a uma nova ação a cada 1 minuto e 45 segundos.
A judicialização consumiu R$ 17,1 bilhões entre 2019 e 2023. Segundo dados da ANS, o setor movimentou R$ 350 bilhões em receitas em 2024, com lucro líquido de R$ 11,1bilhões.
Bruno Sobral, diretor-executivo da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), atribui a alta da judicialização principalmente às mudanças regulatórias de 2022, que ampliaram a interpretação do rol de procedimentos da ANS, alteraram regras de cobertura e reduziram a capacidade de discussão sobre o que deve ou não ser coberto.
No caso da oncologia, Sobral explica que o setor combina alto custo, tratamentos cada vez mais complexos e uma grande assimetria de informação entre o médico do paciente e o da operadora.
“Muitos medicamentos são prescritos em regime off-label [fora das recomendações da bula], sem comprovação robusta de efetividade para determinadas indicações, o que gera divergências técnicas e questionamentos sobre cobertura.”
Outro ponto crítico, diz ele, é o uso de medicamentos oncológicos orais, que, por força de lei, são os únicos de uso domiciliar cuja cobertura é obrigatória. Esses tratamentos de alto custo, explica, dificultam o acompanhamento pela operadora e aumentam as tensões sobre indicação, resultados e custo-efetividade.
Segundo Renata Vilhena, a judicialização enfrenta hoje um novo obstáculo: o descumprimento das ordens judiciais pelas operadoras. A advogada diz que há planos ignorando liminares que determinam a reativação imediata do contrato ou o restabelecimento do tratamento. “Muitas empresas só obedecem depois que o juiz bloqueia valores da conta da operadora ou ameaça de prisão os dirigentes”, afirma.