ANA BOTTALLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Uma equipe de cientistas liderada pelo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), acaba de fazer uma descoberta que pode revolucionar o tratamento de pacientes com síndrome de Rett e, de quebra, proteger o cérebro de astronautas do envelhecimento precoce em missões espaciais.
A combinação das drogas antirretrovirais (lamivudina e estavudina) conseguiu frear o dano neurológico associado à síndrome de Rett em minicérebros e, posteriormente, em camundongos em laboratório. As duas drogas são usadas no tratamento de infecções causadas por vírus, em particular o HIV e hepatite B, e são conhecidas por interromper o processo de transcrição do RNA viral, impedindo a sua proliferação nas células.
No experimento, elas também conseguiram proteger modelos de células que imitam o cérebro de danos causados pelo envelhecimento precoce. A descoberta foi publicada em um artigo no repositório de pré-prints bioRxiv no último mês.
A síndrome de Rett é uma doença genética rara, que ocorre por mutações no gene MECP2 do cromossomo X, responsável por regular diversas funções neurológicas. Na ausência deste gene ou quando ele sofre alterações, as células cerebrais não conseguem desempenhar diversas funções corretamente, acarretando em danos à fala, ao movimento e até à capacidade de respirar.
Os portadores de Rett, em geral meninas (como meninos carregam apenas um cromossomo X, mutações no gene MECP2 acabam inviabilizando a sobrevivência já no útero) têm a manifestação dos primeiros sintomas nos primeiros seis meses de vida, onde há uma regressão das capacidades cognitivas. A síndrome de Rett é uma condição grave que provoca atrasos no neurodesenolvimento, similar a formas severas do transtorno do espectro autista (TEA).
Segundo o neurocientista Alysson Muotri, coordenador da pesquisa e chefe do MuotriLab, na UCSD, a ideia de testar a droga contra Rett foi devido a esta ser uma síndrome cuja causa é bem conhecida e determinada por um único gene.
“Eu já estudo a [síndrome de] Rett há mais de 20 anos, mas sempre com modelos neurais na Terra, e nenhum desses modelos incluía o fator envelhecimento. Para saber como pessoas com Rett envelhecem eu teria que estudar uma mesma criança por 10, 20 anos.”
Esse desafio foi superado com uma série de experimentos que Muotri e sua equipe fizeram com minicérebros no espaço para avaliar os efeitos da microgravidade no envelhecimento precoce cerebral. O projeto, apoiado pela Nasa, enviou os organoides à ISS (Estação Espacial Internacional, na sigla em inglês). “Ao mandar os minicérebros com síndrome de Rett para o espaço vimos que, ao envelhecer, eles ativam uma resposta inflamatória cerebral que contribui para a manifestação da condição”, explica.
Minicérebros são organoides (conjuntos de células criados em laboratório) com formato tridimensional, incluindo tecidos, vasos sanguíneos e outros componentes, que servem como um modelo experimental do cérebro humano.
Já é sabido, por meio de estudos feitos pela própria Nasa, que missões espaciais podem acelerar o envelhecimento de diversos órgãos do corpo, incluindo o cérebro. As causas desse envelhecimento precoce, porém, não eram de todo conhecidas.
Muotri e a equipe observaram, no caso da síndrome de Rett, uma resposta inflamatória cerebral nos minicérebros que foram levados ao espaço. Este processo inflamatório é desencadeado pelo “despertar” de RNA viral endógeno do genoma humano, conhecido como retrotransposons. Estima-se que cerca de 10% do DNA humano é composto por sequências de nucleotídeos de vírus que, ao longo de milhões de anos, acabaram se integrando ao DNA das espécies hospedeiras.
Assim, bloqueando a resposta inflamatória por meio de antirretrovirais, eles conseguiram também frear os danos neurológicos causados pela síndrome de Rett. “Vimos em modelos animais que foi possível recuperar a atividade cerebral normal após bloquear essa via. Recebemos a autorização, pela FDA [agência que controla drogas e alimentos nos EUA], para iniciar os ensaios clínicos em crianças portadoras de Rett”, comemora o cientista.
Similarmente, astronautas que desejam passar períodos prolongados no espaço também podem ingerir esses medicamentos para impedir a inflamação causada pelo envelhecimento cerebral precoce. A descoberta abre portas também para vias de tratamento no futuro para o Alzheimer, uma vez que a perda cognitiva também está associada à inflamação do tecido cerebral.
“Se eu for para o espaço, agora, estarei tranquilo porque sei que existe essa droga neuroprotetora. Se tivermos resultados promissores nos ensaios clínicos [em humanos, autorizados pela FDA], passamos para uma fase de comercialização tanto para famílias de pacientes com Rett quanto para a própria Nasa em suas missões espaciais”, afirma.