FÁBIO PUPO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)
O Congresso deixou de analisar neste ano o projeto de lei enviado pelo presidente Lula (PT) para elevar o rigor sobre as práticas de mercado das big techs. Apesar de ser tratado como um tema prioritário pelo governo e por líderes partidários, a avaliação é que não houve tempo hábil para concluir as discussões durante o calendário legislativo.
A proposta, formulada pelo Ministério da Fazenda para endurecer a legislação sobre condutas concorrenciais das grandes empresas de tecnologia, foi enviada aos parlamentares há cerca de três meses e estacionou em meio a embates entre governo e Congresso. Agora, a previsão no Executivo e entre parlamentares é que o debate seja feito às vésperas do calendário eleitoral o que pode afetar o andamento da matéria.
Relator da proposta, o deputado Aliel Machado (PV-PR) afirmou à Folha de S.Paulo que tem conversado com atores do governo e da iniciativa privada e reconhece que a proximidade do pleito de 2026 pode atrapalhar a tramitação do projeto. Ele ressalta, no entanto, que o foco do texto são questões concorrenciais e não o conteúdo veiculado nas plataformas o que tem potencial de maior controvérsia, por estar ligado ao debate da liberdade de expressão.
“A eleição pode ser ruim se atrasar a análise e [fizer a discussão] não tomar o rumo correto”, diz. “O projeto não trata de conteúdo, de publicações, mas sim de questões mercadológicas e de concorrência. É importante para quem tem compromisso com as empresas, o livre mercado, a concorrência e o patriotismo”, afirma.
O deputado diz, no entanto, que é preferível levar mais tempo para a discussão a votar de qualquer maneira. “Não adianta a gente atropelar e fazer mal feito. Não é contra as big techs, é a favor do Brasil e a favor da concorrência”, diz.
Ele não antecipa as eventuais mudanças que fará no projeto, mas defende medidas para impedir cartéis e evitar que as big techs tenham domínio sobre o processo de formação de preços no mercado. “A Europa regulamentou, o Japão regulamentou e nós precisamos regulamentar. Precisamos fazer o quanto antes, mas sem atropelo”.
Como pano de fundo da discussão, estão as negociações entre os governos de Brasil e Estados Unidos. O relator afirma que teve conversa com representantes da embaixada americana e que a gestão Trump, apesar das preocupações, tem dado sinais de disposição para dialogar sobre o tema.
“Externamente, o governo americano age contra regulação, porque as empresas geram lucro e eles têm toda uma preocupação que elas não podem ter restrição. Mas, internamente, eles têm os mesmos problemas, porque a concentração das grandes empresas existe lá também. Elas são muito poderosas, e isso traz problemas internos na economia dos Estados Unidos”, diz.
Dois requerimentos foram apresentados sobre o projeto na Câmara, entre eles um pedido de votação em regime de urgência por parte de líderes de seis partidos (Republicanos, PL, PDT, PSD, MDB e União Brasil). Caso aprovado o pleito, o texto vai direto ao plenário (sem passar por comissões).
Outro requerimento, em sentido oposto, veio da deputada federal Caroline de Toni (PL-SC), pedindo a instalação de uma comissão especial para debater com mais tempo o projeto que trata, em suas palavras, “da limitação de redes sociais”.
“É inegável que o tema é denso e sensível, exigindo debate aprofundado. Questões relacionadas ao mercado digital envolvem diretamente liberdade de expressão, inovação tecnológica, concorrência digital e direitos fundamentais”, afirma a parlamentar em seu pedido.
“É público e notório que as proposições dessa natureza que tangenciam uso e restrição de plataformas digitais despertam amplo interesse e mobilização social. Assim, não se pode aprovar ou rejeitar matéria dessa relevância sem diálogo”, acrescenta a deputada.
A proposta de Lula cria o que o governo chama de instrumentos pró-competitividade para grandes plataformas, que passam a ser consideradas “sistemicamente relevantes”, e institui mecanismos para impedir eventual abuso de poder econômico pelas gigantes digitais.
Uma das principais mudanças é a criação de uma estrutura no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), a Superintendência de Mercados Digitais, que atuará como uma espécie de agência reguladora das big techs. A nova superintendência poderá instaurar processos administrativos, fiscalizar obrigações e desenvolver estudos para orientar novas medidas para o setor.
Entre empresas de tecnologia, a alteração no Cade é um dos principais pontos de atenção no projeto já que o poder do órgão sobre o setor fica ampliado. Por outro lado, elas manifestaram otimismo com movimentos recentes do órgão que sinaliza abertura para caminhos consensuais em processos sobre esse mercado.
A percepção foi gerada no começo de dezembro, após o tribunal do Cade homologar uma proposta de Termo de Compromisso de Cessação (uma espécie de acordo) na investigação sobre possíveis práticas anticoncorrenciais no Brasil relacionadas ao sistema operacional Android, do Google.
Segundo a Superintendência-Geral do Cade, certas práticas do Android poderiam restringir a concorrência ao condicionar, em contratos com fabricantes de celular e operadoras, a pré-instalação ou a exclusividade de aplicativos do Google, como o Google Chrome. O acordo firmado busca impedir, entre outros pontos, que o uso do Google Play (loja de aplicativos) tenha esses condicionantes.
Entre as empresas, o diagnóstico é que ainda é cedo para análises mais firmes, já que o projeto ainda pode ser substancialmente alterado pelo Congresso. Mas o desfecho do caso no Cade foi visto, preliminarmente, de forma positiva por indicar a possibilidade de uma relação mais amistosa com o órgão sob a nova legislação.
ENTENDA PROPOSTA DE LULA PARA REGULAR BIG TECHS
O projeto cria um novo regime de supervisão para grandes plataformas digitais, dando ao Cade poderes específicos para identificar empresas com relevância sistêmica e impor obrigações especiais para proteger a concorrência.
NOVA ESTRUTURA NO CADE
Criação da Superintendência de Mercados Digitais (SMD), ao lado (e não abaixo) da Superintendência-Geral (SG) do Cade.
Cade passa a ser espécie de agência reguladora do setor, responsável por monitorar grandes plataformas, instaurar processos e fiscalizar obrigações.
QUEM SERÁ FISCALIZADO
- Empresas consideradas “agente econômico de relevância sistêmica em mercados digitais”, que necessariamente terão faturamento anual global acima de R$ 50 bi ou nacional acima de R$ 5 bi;
- Classificação também levará em conta fatores como efeitos de rede, presença em vários mercados, integração vertical, acesso a dados, número de usuários e posição estratégica.
OBRIGAÇÕES, POR ATOS POTENCIAIS DO CADE
- Aumento da transparência sobre critérios de busca, termos de uso e preços;
- Garantia de interoperabilidade e portabilidade gratuita de dados;
- Proibição de práticas predatórias ou que impeçam entrada de concorrentes.
FISCALIZAÇÃO E PENALIDADES
- Plataformas designadas precisam manter escritório no Brasil, com multa diária de R$ 20 mil (podendo ser multiplicada por 50) se não cumprirem;
- Relatórios periódicos de conformidade e possibilidade de auditoria independente;
- Descumprimento pode gerar as mesmas sanções aplicadas a infrações da ordem econômica.