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Política & Poder

‘País precisa rediscutir a divisão dos Poderes’, diz fundador da FGV Direito SP

Do jeito que está, diz ele, “virou bagunça”

Redação Jornal de Brasília

22/09/2021 7h21

Foto: Agência Brasil

Atento ao vaivém da assim chamada reforma tributária que tramita no Congresso – o PL 2.337/21 -, Ary Oswaldo Mattos Filho* começa dando nome aos bois. “Vamos deixar claro: não é uma reforma tributária. É apenas um projeto que muda o Imposto de Renda.” Em seu texto, “ela nada fala dos tributos indiretos, como ICMS, Cofins e outros que tanto encarecem a vida do cidadão”. O que se busca “é apenas caixa, para resolver os problemas do governo”, adverte o respeitado advogado tributarista.

Com seu olhar experiente, o advogado, fundador e professor da FGV Direito SP também chama atenção, nesta entrevista a Cenários, para um tema mais amplo e, a seu ver, crucial: o ativismo judicial que se instalou no debate público. “Hoje, em muitos casos, o juiz assume o papel de legislador porque a decisão dele, em instância final, tem de ser cumprida. Na prática, ele pode estabelecer uma lei dentro de um princípio.” Sua sugestão: “Este é um momento relevante para começarmos a discutir, não apaixonadamente, mas politicamente, a divisão de poder entre União, Estados e municípios. Definir os limites de cada um”.

Do jeito que está, diz ele, “virou bagunça”. Além disso, do outro lado do juiz há um presidente “que sempre tenta bombardear qualquer mexida nos gastos”. No caso do PL 2.337, “se não se enfrentar a questão dos incentivos fiscais, ou a distribuição de dividendos da pessoa jurídica para a pessoa física, teremos um mero band-aid bem pequenininho” para os males nacionais. A seguir, os principais trechos da conversa.

O que acha desse debate sobre reforma tributária que vem se travando no Congresso?

Comecemos deixando claro que não é um projeto de reforma tributária, é um projeto só para modificar o Imposto de Renda. E chega com atraso, pois já temos há muito tempo dois outros, um na Câmara e outro no Senado. O do Senado feito ou coordenado por Luiz Carlos Hauly, e o da Câmara criado pelo (economista) Bernard Appy.

O Executivo, o governo Bolsonaro, não mandou nenhuma proposta?


Não. Nenhuma. Mas agora veio esse projeto de reformulação apenas do Imposto de Renda, pessoa física e pessoa jurídica. A impressão que o projeto dá é que seu conteúdo, nascido no Executivo, só mira o caixa do governo.

Ou seja, trata-se basicamente de uma reforma de impostos?


Só de Imposto de Renda. Lembre-se aqui que, nessa área, o grande enrosco sempre foi a discussão dos impostos indiretos – PIS, Cofins, ICMS etc. E, por incrível que pareça, os secretários estaduais da Fazenda chegaram a uma conclusão sobre um texto, no Confaz, e ele foi abandonado pelo Executivo federal. E por quê? Porque ele busca mesmo é recurso para melhorar o Bolsa Família, pagar precatórios… E os grandes tributos que encarecem a vida das pessoas não entram em pauta. Quanto pesa o ICMS no bolso de todo mundo? Pois estamos sentindo, no combustível…

…e na energia elétrica também, não?


Na energia elétrica, na comida. Então, não temos uma proposta de reforma tributária, apenas uma medida de caixa para o governo, para arrecadar Imposto de Renda. E, assim, se perde o trabalho de muitos anos do Hauly e do Bernard Appy.

O sr. rodou o Brasil uma época, e fez livros sobre reforma tributária. Desde então, alguma coisa mudou nessa área?


Não. Aquele périplo que fiz foi por conta de uma reforma fiscal proposta pelo então ministro (da Fazenda) Marcílio Marques Moreira. Qual a diferença? Que ali se mexia no lado da arrecadação e no lado do gasto. Esse é outro defeito que ocorre agora: o presidente sempre tenta bombardear as mexidas no gasto. Ora, se quiser mexer só no lado da arrecadação, não há imposto que chegue para cobrir o rombo das despesas. Basta uma simples análise do Orçamento federal para ver que inexiste quase capacidade para investir, para pagar as dívidas com precatórios, pagar as aposentadorias das pessoas. Uma proposta tem de ter organicidade, mexer com a capacidade de arrecadação da União, de Estados e municípios. Enquanto não se mexer a sério com incentivos fiscais, com distribuição de dividendos da pessoa jurídica para as pessoas físicas, isso aí é um mero band-aid pequenininho…

Vai ser necessário ver o Brasil quebrar, como quebrou a Argentina, para termos uma reforma fiscal consistente?
Quando o País estiver quebrado, não será a melhor hora de se fazer uma reforma, porque você tem certas despesas constantes e necessárias, direitos adquiridos; e do outro lado, tem a falência arrecadatória de União, Estados e municípios. Uma reforma fiscal tem de levar em conta dois conflitos fundamentais. Um do lado da arrecadação: os Poderes sempre acham que precisam de mais dinheiro, sem dar atenção à máquina administrativa. Do outro lado, os contribuintes, pessoa física e jurídica, para os quais qualquer reforma é boa “desde que atinja o meu vizinho, mas não a mim”.

Sempre assim. Não no meu quintal…
Isso causa uma dificuldade. Se você pegar a distribuição da carga tributária no Brasil, verá que é fundamentalmente sobre o consumo, e não aparece na nota fiscal quanto o sujeito está pagando de ICMS, de Cofins etc. Ele paga sem sentir. Joga isso na conta do preço do produto.

O sr. vê alguma mudança no curto e médio prazo com essa atual proposta? Tem esperança de ver, um dia, uma reforma consistente aprovada?


Aquele esforço feito pelo Hauly e pelo Bernard Appy na Câmara, ali a reforma avançou. Mas parou porque o legislador federal resolveu esperar pela proposta do Executivo, que o governo disse que ia mandar. E aí se perdeu o momento. Mudaram os presidentes da Câmara e do Senado, mudaram também as lideranças. Agora, é começar de novo.

Anos atrás, o ministro argentino Domingo Cavallo me falou sobre a diferença entre Brasil e Argentina: “Ustedes tienen el samba, nosotros el tango… y quando afundamos, afundamos”. Ou seja, o Brasil nunca vai muito acima, nem muito abaixo. Por aqui, temos agora uma briga entre os três Poderes. E houve um grande embate entre o presidente da República e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, que acabou em carta redigida com ajuda de Michel Temer. Lembrei do Cavallo. Nós nunca quebramos de verdade, e tampouco temos sucesso consistente?
Imagino que talvez esse seja um problema mais sério que o da reforma tributária, porque é uma briga pelo poder, enquanto a reforma é uma briga entre órgãos tributantes e cidadãos pagantes.

Os papéis e limites entre os Poderes se tornaram um tanto confusos, não?


Isso. A briga de poder entre o Executivo, o legislador e o juiz encorpou a partir da Constituição de 1988. Esta colocou uma série grande de princípios. Conceito de utilidade pública, conceito de segurança, de saúde… Em muitos casos, o juiz assume o papel de legislador porque a decisão dele, em instância final, tem de ser cumprida. Na prática, ele pode estabelecer uma lei dentro de um princípio.

E fica difícil resolver as pendências.


Existe hoje um encantamento com a utilização de princípios que não estão contidos na Constituição. São princípios abertos, não têm propriamente um conteúdo, e por aí o Poder Judiciário vai preenchendo esses princípios e, por exemplo, acaba absolvendo um condenado. A partir daí, o Poder Judiciário passou a ser legislador. E entrou em cena o ativismo judicial.

Voltando à reforma tributária, vamos falar de um tema que o sr. conhece bem, o mercado financeiro. Dividendos são tributáveis? Seria uma bitributação?


Primeiro, a Constituição tem algumas hipóteses a respeito. Sobre uma mesma transação você paga IPI e ICMS. Já existiu, no passado, a tributação dos dividendos distribuídos. O que está em discussão é se é melhor tributar os dividendos na expectativa de que a empresa mantenha consigo a maior parte do lucro para reinvestir, porque a tributação para os acionistas é onerosa, ou se é melhor distribuir dividendo para estimular o mercado de capitais, a participação popular no mercado acionário.

Do modo como estão as coisas, como achar a saída e melhorar os horizontes do País?


Fazendo do limão uma limonada, este é um momento relevante para começarmos a discutir, não apaixonadamente, mas politicamente, a divisão de poderes entre União, Estados e municípios. Por quê? Porque o presidente da República atual chegou ao poder imaginando que o poder dele é quase absoluto. E não é. O legislador utilizou essa impressão para participar de uma gestão conjunta Executivo-Legislativo. O que é mortal, porque o Legislativo perde sua identidade se participar do Executivo. E o juiz também precisa saber dos seus limites. Para evitar cenas como a daquele presidente do Senado que, diante de uma decisão do STF afastando-o do cargo, disse ao oficial de Justiça: “Não vou cumprir”.

Sim, foi o Renan Calheiros, hoje relator da CPI da Covid.
O juiz teve de dar meia-volta e dar o dito pelo não dito. Porque, historicamente, o Judiciário é um setor sem poder físico. Ele só vai até o ponto em que a cidadania cumpre as decisões.

De que forma se pode tirar isso de cena da vida pública brasileira?


O juiz tem de ter bem claro o limite de sua força, que é uma força moral. O juiz não é político, não fala fora dos autos. E algumas vezes os juízes não obedecem nem às suas próprias regras. Por exemplo, o prazo fixado para devolver um processo. Nem sempre eles atendem. Outro exemplo: não falar fora dos autos. O juiz cria sua fortaleza pelo exemplo.

Não é fácil fazer essas mudanças…


Democracia é difícil, mas tirania é pior ainda. Por isso, eu acho que este é um momento ideal para que comecemos a botar isso em público. Discutir. A Constituição é perfeita? Não. Deve ser mudada? Pode ser que sim e que não. E lembremos que, atrás disso tudo, estamos nós, seres humanos falíveis, imperfeitos, a raça humana. Veja só, a democracia participativa. Ela não gerou um Donald Trump?

Estadão Conteúdo

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