GEOVANA OLIVEIRA E JOÃO GABRIEL
BELÉM, PA (FOLHAPRESS)
Argentina, Paraguai, Irã e Vaticano, representado nas negociações pela Santa Sé, vêm liderando uma ofensiva na COP30, a conferência da ONU sobre mudança climática, para tentar barrar que o conceito de gênero inclua a comunidade LGBTQIA+. A intenção é limitá-lo apenas ao sexo biológico de homem ou mulher.
A atuação destes países que tem apoio de outros fica evidente principalmente na negociação do texto que trata das questões de gênero relacionadas às mudanças climáticas, mas o debate também surge em outros documentos, com destaque para transição justa e adaptação.
A Arábia Saudita, a Rússia e o Egito, de forma menos explícita, também se opõem à inclusão de pessoas transexuais e não binárias na discussão de gênero, segundo observadores ouvidos pela Folha de S.Paulo.
Esse movimento acontece desde as reuniões preparatórias da COP30 na Alemanha, em junho, como mostrou o Painel, e dificulta o avanço de políticas reparatórias para mulheres afetadas pela crise climática.
Negociadores ouvidos pela reportagem expressam surpresa com a investida. O termo gênero é usado há décadas nas COPs para pontuar que meninas e mulheres sofrem mais com os efeitos da mudança do clima, e cada país costuma recorrer à ambiguidade para interpretar o conceito da sua própria forma.
O imbróglio, puxado por Argentina e Paraguai, é lido com uma tentativa de tumultuar as negociações. O presidente Javier Milei é seguidor das políticas de negacionismo climático promovidas por Donald Trump nos Estados Unidos.
TEXTO DE GÊNERO
O novo rascunho do texto de gênero tem quatro notas de rodapé, dos países Paraguai, Argentina, Irã e Vaticano, respectivamente. Todos afirmam que gênero deve ser limitado à definição biológica de homem e mulher tanto nessa discussão específica, como em todas as outras da cúpula do clima.
O Vaticano, inclusive, fez essa ressalva em 2022, quando aderiu à COP. “Santa Sé sublinha que qualquer referência a ‘gênero’ e termos relacionados em qualquer documento que tenha sido ou que venha a ser adotado pela Conferência das Partes Contratantes ou pelos seus órgãos subsidiários deve ser entendida como baseada na identidade sexual biológica que é masculina e feminina”, diz o texto da nota de rodapé.
“A Santa Sé defende e promove uma abordagem holística e integrada que está firmemente centrada na dignidade humana e no desenvolvimento humano integral de cada pessoa”, conclui o Vaticano.
Segundo os observadores, a tentativa de definir o que seria gênero pode barrar a atualização do GAP (Plano de Ação de Gênero, na sigla em inglês), que pretende detalhar a agenda de gênero para os próximos dez anos, definindo caminhos para o financimento de adaptação para mulheres, por exemplo.
O último GAP foi definido na COP20, que aconteceu em Lima, renovado em Madri e teve prazo prolongado por dez anos aprovado no Azerbaijão. Na COP30, está sendo decidido o novo plano de trabalho basicamente, como as desigualdades de gênero poderão ser combatidas no contexto da mudança climática.
Os movimentos feministas pressionam por metas mais ambiciosas, como a inclusão de saúde sexual e reprodutiva e da economia do cuidado nas discussões da crise climática de base.
MULHERES AFRODESCENDENTES
A pauta de gênero é importante para o Brasil, que se esforça para incluir o termo “mulheres afrodescendentes” no texto, tema que também tem barrado a discussão. Para o governo, essa inclusão seria um legado da COP30.
“Quando se discute os impactos da mudança do clima, a gente precisa lembrar que as pessoas, e entre elas, as mulheres, não são impactadas da mesma forma. Mulheres indígenas, periféricas e negras, sofrem mais”, diz Vanessa Dolce de Faria, alta representante para temas de gênero no Ministério das Relações Exteriores.
Há países, porém, que não aceitam o termo “afrodescendente”. Em parte, segundo observadores, o bloco de países africanos tem dificuldade para entender a definição devido a diferenças culturais e também aponta um temor na divisão do financiamento.
Apesar de serem os mais vocais, esses países são apoiados pela União Europeia e Reino Unido, além da Austrália, que aparece de forma mais sutil.
O Instituto Geledés denunciou que trecho do GAP que garantiria reconhecimento e participação plena de afrodescendentes na conferência, acordado e em estágio avançado, foi travado pela recusa da União Europeia, do Reino Unido e da Austrália em permitir sua inclusão.
“Em mais um capítulo colonizador, esses países estão barrando a possibilidade de garantir direitos e reconhecimento a uma população historicamente inviabilizada”, afirma a entidade.
Em eventos laterais às salas de negociação, mulheres pedem rapidez na decisão. “Estou cansada de ficar discutindo sobre definições de dicionário”, disse Zukiswa White, assessora de gênero da Fenmet (Rede de Desenvolvimento e Comunicação das Mulheres Africanas, na sigla em inglês), na África do Sul, em evento sobre mulheres e soluções climáticas.
Segundo ela, é urgente a inclusão de apoio técnico a mulheres na agenda de transição justa da COP30 e uma simplificação no financiamento climático para mulheres de organizações. “As soluções estão aqui, nessas salas, a pergunta é se vão ouvir”.
No início da segunda semana de negociação, a alta representante para gênero no Brasil diz estar otimista de que os países já entenderam que o GAP é uma prioridade da presidência da COP30. Segundo ela, será feito um grande esforço na negociação, tanto para que o plano seja concluído, quanto para que inclua mulheres afrodescendentes.
A princípio, o país não quer aceitar notas de rodapé no texto, uma vez que isso poderia ser um precedente ruim em outras negociações.
GÊNERO NAS NEGOCIAÇÕES
A discussão sobre gênero se repete no debate sobre a transição justa tema que engloba garantir que os benefícios das soluções climáticas e as ações de combate ao aquecimento global não privilegiem apenas as populações ricas, mas pelo contrário, sejam acessíveis sobretudo àquelas mais vulneráveis.
Tanto Paraguai, quanto Argentina repetiram a mesma nota de rodapé neste documento, e há menções à palavra gênero que estão entre colchetes, o que significa que não estão em consenso.
O termo, inclusive, apareceu em um dos primeiros parágrafos do rascunho da decisão de mutirão elaborada pela presidência brasileira da COP30 para tratar dos temas mais polêmicos da negociação.
Até aqui, essa é a primeira versão apresentada deste texto e é uma proposta, que será debatida pelos países e há espaço para que a tentativa de barrar a discussão sobre gênero também aconteça neste âmbito.
Na mesa que discute a criação de indicadores para a área de adaptação climática, também há debate sobre a inclusão da questão de gênero e dos afrodescendentes, assim como a relação entre mudança climática e direitos humanos em geral.
Segundo um observador ouvido pela reportagem e que acompanha este tema, não houve discussões específicas sobre o tópico de homens e mulheres, mas chineses e paquistaneses têm tentando barrar as discussões de temas considerados transversais o que incluí tais tópicos.