LUCAS MONTEIRO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
A brasileira Marina Lacerda, 37, chamada de “vítima menor número um” nos documentos de acusação do suposto esquema de exploração e tráfico sexual comandado por Jeffrey Epstein, diz acreditar que Donald Trump tem mais envolvimento com o caso do que se sabe até aqui. Ela afirma ainda que a mudança de estratégia do presidente dos Estados Unidos no caso é uma tentativa de controlar a narrativa para tirar a visibilidade das vítimas.
O republicano, pressionado por sua base após documentos levantarem novas dúvidas sobre o quanto sabia dos crimes supostamente cometidos por Epstein, pediu nesta segunda-feira (17) aos congressistas de seu partido para que votem pela liberação dos arquivos da investigação.
“Ele [Trump] quer silenciar a gente, e o único jeito é estar do nosso lado”, diz Lacerda à reportagem. “Ele não vai querer ir contra, porque isso nos dá mais visibilidade. [Trump] vê que estamos aparecendo cada vez mais aqui nos EUA, no Reino Unido. Então, só assim para nos dar menos voz.”
Para ela, Trump tem mais envolvimento no caso do que apenas citações e trocas de emails com o financista e abusador de menores, e a relação entre os dois ainda não está totalmente explicada. “Em 2009, ele estava querendo ajudar a gente a divulgar essa história, e hoje é completamente contra”, afirmou à reportagem antes da mudança de posição do presidente americano. “Quando a pessoa esconde, a gente sabe que tem envolvimento. Tenho minhas razões para acreditar que ele está envolvido em mais coisas do que só emails com Epstein”, diz, sem entrar em detalhes.
O apoio de membros do Partido Democrata ajudou a dar mais visibilidade para o caso, forçando, mesmo que em partes, a divulgação dos documentos. Com apoio do Partido Republicano, a Câmara dos Representantes deve votar para divulgar todos os papéis nesta terça-feira (18), mas a medida enfrenta resistência no Senado. Trump prometeu sancionar o texto se aprovado nas duas Casas.
Lacerda acredita que, apesar da mudança de posicionamento do presidente americano, as vítimas terão que continuar brigando. “Nós estávamos chegando perto de ter esses fatos divulgados ao público. Agora, vamos ter que brigar mais”.
A brasileira imigrou para os EUA aos oito anos de idade, com a mãe, a irmã e o padrasto, e sofreu uma rotina de abusos nas mãos do parceiro da mãe, que foi preso. “A situação em casa estava difícil. Minha mãe me culpava pela prisão do meu padrasto, e eu peguei essa responsabilidade de começar a trabalhar”, afirma.
Foi nesse cenário que conheceu Epstein. Quando tinha 14 anos, foi levada por uma amiga, também brasileira, que fazia massagens no financista. “Ela não me contou tudo o que ia acontecer. Só falou de um cara mais idoso, super-rico, que morava em Manhattan [em Nova York] e queria uma massagem de uma menina nova. É claro que, quando eu cheguei no Epstein, começou de um jeito, mas acabou completamente de outro”, afirma.
Na casa de Epstein, Lacerda conta como era feita a manipulação das garotas, com o abusador prometendo dinheiro e ajuda para conseguir visto permanente a fim de continuar no país. “Ele falava que era o dono do banco, o dono do governo, o dono do presidente, que ele mandava em tudo”, diz. O imóvel também tinha diversas fotos de Epstein com autoridades e figuras públicas, como o ex-príncipe Andrew, irmão do rei Charles 3º, e o ex-presidente americano Bill Clinton.
“Quando eu fazia massagem nele, ele conversava com [autoridades e políticos] no telefone, mas nunca falou que estava ganhando massagem de uma menina menor de idade, sempre dizia que estava recebendo massagem de uma menina bonita”, relembra a brasileira.
A rotina de abusos mudou rápido. Lacerda conta que Epstein, depois de três ou quatro meses, já pedia que a garota trouxesse amigas para os encontros. “Ele falou que a nossa relação já estava ficando chata. Eu não queria [trazer outras meninas] porque eu tinha muita vergonha. Como eu ia falar para elas o que eu estava fazendo lá?”.
Pressionada, ela diz ter apresentado outras duas amigas a Epstein e afirma que elas foram abusadas por três anos. “Eu não sabia do envolvimento de outras mulheres além das minhas amigas, porque quando eu ia [na casa de Epstein], via outras meninas saindo da casa, mas não pensava que elas estavam fazendo a mesma coisa que eu”, conta.
Em 2008, Lacerda foi procurada pela primeira vez pelo FBI, a polícia federal americana, e diz que, na época, não tinha conhecimento da investigação em andamento. Epstein seria condenado por “contratar prostituição de menor de idade” no mesmo ano, em um acordo controverso com a Justiça dos EUA.
Eu não estava falando muito com Epstein, eu já era muito velha para ele”, afirma tinha cerca de 20 anos. Ela diz ter ficado assustada e procurado o financista rapidamente. Epstein, então, teria contratado um advogado para defendê-la.
“Eu fui ver esse advogado em Manhattan e ele me perguntou o que tinha acontecido entre mim e Jeffrey Epstein. Eu até perguntei para ele: É para eu falar a verdade? Esse advogado não era para mim, era para proteger [Epstein]”, explica.
Ela visitou o advogado mais três vezes e, então, assinou um documento cujo teor desconhecia. “Eles viraram para mim e falaram Olha, você não precisa ir à Justiça, não precisa vir mais. Assina esse papel e você está livre para ir, e eu fiquei livre muito tempo.”
O FBI só voltou a procurá-la em 2018, quando o caso voltou a repercutir e culminou na prisão de Epstein em julho de 2019. “Lembro de ter pensado: Meu Deus do céu, isso nunca vai embora. Eu vou ter que falar com o FBI de qualquer jeito. Dei todos os depoimentos sozinha, foi muito difícil. Fiquei com muito medo e eu nunca mais quero passar por isso”, conta.
Lacerda e Epstein nunca ficaram cara a cara no tribunal: o abusador cometeu suicídio antes de ser levado a julgamento, em agosto de 2019. Ela se diz aliviada por não precisar passar por esse momento. “Eu não queria ficar de frente com ele e falar as coisas que ele fez comigo e com outras meninas. Mas, por um lado, foi ruim, porque a gente não teve justiça e até hoje estamos brigando por isso.”
Lacerda prepara um livro contando os anos de abuso sofridos desde que chegou aos Estados Unidos. Ela diz querer ajudar outras mulheres que passaram pelo mesmo. “Tenho hoje um poder muito maior sobre essa história e o controle de conseguir sentar aqui e contar o que é ser abusada, e o que é ter uma vida depois do abuso. As pessoas esquecem que existe uma vida após o abuso”.
Para a ativista, expor ao mundo sua história é importante especialmente para as brasileiras e latinas, que, segundo ela, têm mais vergonha de denunciar abusos. Lacerda lembra que sua própria família também não apoiou a decisão de vir a público. “Eles foram completamente contra porque pensaram que seria uma vergonha. Eles tinham medo da politização do caso, como o que tem acontecido agora. Mas eles entenderam que aquilo não era sobre política, era sobre a minha vida.”