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Mundo

Guerra nos mares: China usa rede de portos para ampliar força comercial e militar

A infraestrutura está espalhada em cinco continentes e se tornou pilar do funcionamento do comércio mundial

Redação Jornal de Brasília

07/03/2025 22h04

xi jinping

Foto: AFP

São Paulo, 06 – A China construiu uma rede de portos ao redor do mundo nos últimos vinte anos que a preparou para uma competição comercial com os Estados Unidos, que ganha cada vez mais tração em meio à guerra tarifária iniciada pelo presidente americano, Donald Trump, na semana passada. A infraestrutura está espalhada em cinco continentes e se tornou pilar do funcionamento do comércio mundial.

Enquanto a Casa Branca adota uma política cada vez mais protecionista, com a política de tarifas, Pequim vai na contramão e busca expandir seu mercado. Do ponto de vista geoestratégico, a China tem a possibilidade de usar essa estrutura portuária para expandir sua força naval e de espionagem.

Apesar da demonstração de força, no entanto, a crise imobiliária e de endividamento interno no país e a pressão americana sobre a economia chinesa têm diminuído o volume dos investimentos em portos, já que o governo tem direcionado recursos para estimular a economia e desenvolver outras áreas.

Em 2020, a nação asiática se tornou a maior parceira comercial de 120 países, incluindo o Brasil, e no ano passado o superávit comercial atingiu o recorde de US$ 990 bilhões (cerca de R$ 5,7 trilhões). Cerca de 95% desse comércio foi feito por rotas marítimas.

Em diversos discursos nos últimos cinco anos, o líder chinês Xi Jinping falou sobre a expansão do comércio exterior como necessário para o crescimento econômico – na visão dele, tanto da China quanto de outros países. E, nesse sentido, os portos são essenciais para Pequim. “Costumamos dizer que para ficar rico precisamos primeiro construir estradas; mas em áreas costeiras, para ficar rico também precisamos de portos”, disse Xi em 2017.

O maior plano chinês para a expansão do comércio exterior foi a Rota da Seda Marítima, lançada por Xi Jinping em 2013, seu primeiro ano de governo. O programa fez parte da Iniciativa do Cinturão e Rota, criada com o objetivo de melhorar o acesso da China aos mercados mundiais com investimentos em infraestrutura no exterior. A América Latina foi uma das regiões mais beneficiadas com a iniciativa, o que aumentou a influência chinesa e despertou preocupações dos Estados Unidos.

No ano passado, Xi viajou até o Peru nos dias que antecederam a reunião do G-20, no Rio de Janeiro, para prestigiar a abertura do Porto de Chancay, operado majoritariamente pela Cosco, uma empresa estatal chinesa, pelos próximos 60 anos. O porto foi anunciado como transformador para as relações comerciais da China com a América Latina e abriu uma rota mais curta com a região pelo Oceano Pacífico, sem precisar usar o Canal do Panamá ou cruzar os oceanos Índico e Atlântico.

Segundo a pesquisadora associada do Centro de Relações Exteriores (CFR, em inglês), Zongyuan Zoe Liu, o interesse de Pequim em expandir a sua rede portuária é natural, dado a importância do comércio exterior para a economia chinesa e as dificuldades internas do país. “É muito importante para a China, na economia e na geopolítica, ter uma rede portuária confiável que facilite o seu papel no comércio internacional”, declarou.

O Porto de Chancay é um exemplo para ilustrar a importância da infraestrutura tanto para a economia quanto para a geopolítica. Através dele, a China tem acesso mais fácil à soja, milho e carne bovina, essenciais para a segurança alimentar de uma nação de 1,4 bilhão de pessoas, e a minérios como o lítio, usados para a fabricação de baterias para carros elétricos – o produto atual mais forte da indústria chinesa.

A infraestrutura também é o pilar para a China ocupar o espaço que pode ser deixado pelos Estados Unidos sob a nova política de tarifas de Donald Trump, que foi utilizada como ameaça sobre a Colômbia e o México nos primeiros dez dias de governo e ameaça diminuir o comércio entre os EUA e os países taxados. No dia 6, a Colômbia anunciou a abertura de uma nova rota com a China que utiliza as instalações de Chancay.

Mas, para além dos objetivos comerciais mais óbvios, ter uma rede de infraestrutura portuária oferece à China mais acesso à informação e a possibilidade de expandir sua presença militar. Hoje, essas são as maiores preocupações dos Estados Unidos.

Inteligência e bases navais

A presença da China nos portos se dá de duas formas principais: na operação por empresas estatais, como a Cosco, ou por empresa privada, a Hutchison Holding, sediada em Hong Kong. As operações das duas acontecem de maneira parcial – por exemplo, no controle de apenas um terminal de contêiner – ou total, quando controla todas as etapas de um porto.

A princípio, isso oferece a essas empresas uma gama de informações sobre cargas movimentadas nos portos, que segundo analistas, pode dar vantagem à China sobre concorrentes, incluindo em espionagem. “Esse controle pode oferecer, inclusive, informações sobre transporte de equipamentos militares. Em um contexto de disputa com os EUA, são informações valiosas”, declarou o professor de administração e economia da USP e da FIA, Celso Grisi, especialista em comércio exterior.

Outro aspecto do controle chinês alertado pelos analistas é a possível instalação de bases navais nos portos em águas profundas, importante para a China defender rotas de suprimento. De acordo com um levantamento da CFR, 57 dos 105 portos operados por chineses possuem capacidade para receber navios de guerra – entretanto, a China teria mais capacidade de instalar bases nos portos em que ela detém a operação majoritária.

Pelo menos um desses portos, o de Djibouti, localizado na saída do Mar Vermelho, tem uma base já instalada. Apesar de ter uma operação minoritária no porto, os chineses conseguiram um acordo para instalar a base em uma das principais rotas do comércio global e alvo de tensões constantes. Outros locais, como os portos de Lagos, na Nigéria, e de Pirineus, na Grécia, já receberam navios de guerra da marinha chinesa.

Para os Estados Unidos, a expansão naval chinesa, que transformou a China na maior marinha do mundo, é uma preocupação a longo prazo para sua segurança, mas não uma ameaça atual. Hoje, os EUA possuem bases navais em mais de 10 países, contra uma da China.

Apesar disso, essa preocupação ajuda a explicar as declarações do presidente Donald Trump sobre a soberania do Canal do Panamá. O presidente alega que a região possui a presença de soldados chineses e utiliza o fato da Hutchison Holdings operar em dois dos cinco portos adjacentes ao canal como prova. A empresa está no local desde 1997.

Para Zongyuan, no entanto, as operações por parte de empresas chinesas, sejam elas estatais ou privadas, não dão a Pequim a capacidade de interferir com seus interesses. “A Cosco, por exemplo, tem estreita relação com o governo. Mas o CEO da Cosco precisa manter seu emprego. Se o desempenho da empresa cair, eles serão responsabilizados. Do ponto de vista deles, eles não querem perturbação nos portos”, afirmou.

“No seu relatório anual, a Cosco fala sobre isso, sobre ver as tensões crescentes como um risco para a empresa, tanto em operação quanto em receita”, acrescentou a especialista.

Problemas internos

Apesar da rede de portos, problemas internos da China diminuíram investimentos em infraestrutura portuária ao redor do mundo. O país enfrenta crise com endividamento nas províncias e quebra do mercado imobiliário, que fez milhões de chineses perderem empregos na construção civil.

Como consequência, o governo chinês passou a direcionar os recursos para estimular a economia e o desenvolvimento em outras áreas, como a transição energética. O volume de investimento em portos no exterior caiu nesta década e novos projetos não são apresentados com tanta frequência. “A China tem enfrentado problemas internos na sua economia. Isso forçou o governo chinês a redirecionar seus gastos”, disse Jacob Gunter, analista do centro de estudo Mercator Institute for China Studies.

Além disso, a desconfiança exterior com relação a Pequim também cresceu nesta década. Muitos países que receberam os investimentos no passado adotaram a política de afastamento da China – um exemplo seria a Grécia, que permitiu um navio militar chinês entrar no porto de Pirineus no passado e dificilmente deixaria o mesmo hoje, pela desconfiança crescente entre a União Europeia e Pequim. Outras nações, em especial as africanas, tiveram dificuldades de arcar com os empréstimos chineses e não conseguem novos financiamentos.

Segundo Gunter, houve também o problema de sustentabilidade em muitos lugares, que levou a China a perder contratos e obras. Algumas empresas ocidentais correram para adquirir participações destes portos, embora não na mesma proporção que as empresas chinesas. Ele ressalta que, mesmo sem novos investimentos, o pioneirismo da China em construir a rede de portos garante ao país a influência no transporte marítimo global pelos próximos anos.

Estadão Conteúdo

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