GABRIEL BARNABÉ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Em Madagascar, o presidente Andry Rajoelina foi deposto e fugiu do país. No Nepal, o primeiro-ministro K. P. Sharma Oli foi forçado a renunciar. Protestos pelo Marrocos juntaram centenas de milhares contra o premiê Aziz Akhannouch. Na América Latina, peruanos se mobilizaram e levaram à destituição da presidente Dina Boluarte.
O ponto em comum entre todos esses movimentos é a mobilização da geração Z. O grupo, formado por pessoas que têm entre 14 e 28 anos, tomou as ruas de diversos países nas últimas semanas com uma nova lógica de engajamento político –veloz, descentralizada e mediada pelas redes sociais.
Além dos países já citados, Filipinas, Indonésia, e Quênia também viram recentemente jovens levarem para as ruas a lógica dos ambientes digitais, em que adesão e participação são rápidas, horizontalizadas e, acima de tudo, construídas em rede.
O ponto de partida das manifestações varia. No Nepal, por exemplo, uma proibição às redes sociais levou a protestos que ganharam força com denúncias de corrupção e insatisfação econômica. O denominador comum é o desgaste com as instituições tradicionais.
Para Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo, é um erro interpretar essa geração como apática ou desinteressada. “Eles apenas se formam e se informam politicamente por circuitos muito diferentes dos nossos. São ecossistemas digitais de informação e mobilização que passam por baixo do radar das gerações anteriores”, afirma.
Segundo a pesquisadora, a digitalização da política é o ponto de partida para compreender esse fenômeno. “As primeiras experiências políticas da geração Z são no campo digital. Eles são nativos digitais se politizando digitalmente. Para eles, essa experiência é absolutamente natural”, diz.
Isso é o que, segundo ela, muda o ritmo dos acontecimentos recentes. As convocações ocorrem em horas, as causas se espalham em minutos e os símbolos se formam de maneira espontânea, em linguagem audiovisual e compartilhável.
Em Madagascar, a rapidez com que a insatisfação escalou para uma crise política confirma essa tese. Protestos liderados por jovens, motivados por cortes de água e luz e por denúncias de corrupção, cresceram na capital, Antananarivo, até que uma unidade militar de elite aderiu aos manifestantes, forçando o presidente Andry Rajoelina a fugir do país.
Ao contrário das grandes manifestações do século 20, marcadas por hierarquias e lideranças fixas, os protestos recentes são movidos por uma estrutura fluida, como aplicativos de mensagens e redes sociais.
Mas essa intermediação das big techs, diz Solano, introduz uma nova variável: o algoritmo.
“Toda essa mobilização está mediada por atores transnacionais, conglomerados hiperpoderosos e oligopólicos e por essa lógica da escuridão, porque o algoritmo não é transparente”, afirma. A capacidade de engajamento de uma pauta, diz ela, depende de mecanismos que escapam ao controle dos próprios manifestantes.
Sofia Ong’ele, 25, diretora de estratégia da organização americana Gen Z for Change (geração Z por mudança), compartilha a mesma preocupação. “Os algoritmos não são neutros”, diz. “Eles refletem as vontades de quem os desenvolve e das corporações que os controlam.”
Para ela, criar “os próprios espaços digitais da geração Z” é uma das poucas maneiras de garantir que o ativismo online permaneça livre de censura e manipulação.
A velocidade e a capilaridade inéditas dos movimentos inseridos nessa nova lógica podem ser também um ponto de fragilidade.
Opositores dos movimentos da geração Z apontam que os protestos não promovem políticas práticas e têm uma volatilidade propícia para o alastramento de desinformação e manipulação. A leitura oposta diz que manifestantes em diversos países organizaram protestos com milhares de pessoas e que, em todos os casos, geraram repercussões políticas.
Sofia, que atua com uma rede de mais de 500 criadores de conteúdo com alcance digital de cerca de meio bilhão de pessoas, reforça essa leitura. “Queremos que qualquer pessoa, em qualquer lugar, possa se envolver em mudanças sociais sem as barreiras tradicionais. O digital nos permite democratizar o engajamento político”, diz.
Ela vê as plataformas como facilitadoras dos movimentos, e não substitutas. “As redes ampliam o alcance dos protestos e permitem novas formas de ação, mas não substituem o ato de ir às ruas. Ainda vemos pessoas se mobilizando presencialmente, e o digital apenas potencializa isso”, afirma.
Contribui para essa nova lógica a ausência de figuras centralizadoras nesses movimentos. “Essa geração não precisa de um líder carismático que autorize ou mobilize o protesto”, diz Solano. “Eles conseguem se engajar espontaneamente, de forma autônoma.”
A mudança, segundo ela, rompe com o paternalismo político das décadas anteriores e abre espaço para uma militância mais difusa, em que causas ambientais, identitárias e democráticas podem também se entrelaçar.
Sofia vê nisso tanto uma força quanto um desafio. “A descentralização permite que mais gente participe, mas também cria vácuos de poder depois dos protestos”, afirma. “Nunca houve tantos movimentos sem liderança acontecendo ao mesmo tempo. Isso é novo, e estamos aprendendo em tempo real o que vem depois.”
Exemplo disso é o compartilhamento de símbolos entre manifestantes de diferentes países. A bandeira da série japonesa One Piece, com um crânio trajando um chapéu de palha, foi usada na Indonésia, no Nepal e em Madagascar. Os jovens a utilizam como um código visual de rebeldia e recusa à autoridade tradicional.
Além dos questionamentos sobre efeitos e proposições de médio e longo prazo, o principal desafio, diz a pesquisadora, será articular esse novo ecossistema político com as estruturas tradicionais de representação.
“Existe uma ruptura grave entre essa geração e a lógica clássica da democracia institucional”, diz.
“Precisamos construir pontes entre a plataformização da política e as instituições, porque os esforços de mobilização juvenil muitas vezes não chegam a conclusões concretas justamente por não encontrarem esse encaixe.”
Para Sofia, essa ponte ainda é uma incógnita. “Tudo é muito novo”, ela afirma. “Mas o que sabemos é que o poder popular, a solidariedade e a criatividade dessa geração são grandes demais para caber nas formas antigas de fazer política.”