Nos últimos meses, o Brasil passou a lidar com um paradoxo. A oferta de energia tem superado a demanda — o que pode até levar o País a um novo apagão —, mas esse excesso de capacidade não tem se refletido em alívio para o bolso do consumidor. Ao contrário. Entre janeiro e setembro, a conta de energia elétrica residencial acumula uma alta de 16,42%, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Mas o que explica esse cenário? De acordo com os especialistas, são vários os fatores que tornam a fatura de energia cara no Brasil.
Um dos pontos que encarecem a energia é exatamente o excesso. Hoje a geração está maior do que a demanda. Isso ocorre sobretudo por causa da escalada da geração distribuída, aquela produzida pelos consumidores com painéis solares instalados no telhado das residências e dos estabelecimentos comerciais.
Durante o dia, quando o sol está a pino, essas “microusinas” geram muita energia, mas o consumo é baixo. Nesse caso, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) tem de cortar a geração de energia de outras usinas para não sobrecarregar o sistema e provocar um apagão (e isso gera prejuízo para muitos empreendimentos).
No fim da tarde e no início da noite, quando as usinas solares já não geram mais energia pela falta do sol, a demanda começa a crescer. E, nesse momento, o ONS é obrigado a acionar usinas térmicas, caras e poluentes. O preço da energia dessas unidades pode ser até cinco vezes mais caras do que a média, diz a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoun. Isso faz com que a bandeira tarifária fique vermelha — acréscimo de R$ 4,46 para cada 100 quilowatts-hora (kWh) consumidos.
Outro ponto é que, para o consumidor cativo, atendido pelas distribuidoras, a energia consumida é aquela contratada em leilões de usinas mais antigas, cujo preço é mais elevado, explica o coordenador-geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ, Nivalde de Castro. Além disso, para esse consumidor sobram quase todos os encargos do setor, incluindo os subsídios de painéis solares instalados no telhado de muitas residências.
Os dados mais recentes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que os subsídios para o setor já somaram R$ 39 bilhões em 2025, até outubro, representando 17,58% na tarifa dos consumidores residenciais. No ano passado, chegaram a R$ 48,9 bilhões. E esse montante cresce anualmente. Em 2018, o total era de R$ 18,8 bilhões.
A análise detalhada desses números bilionários mostra que a maior parte dos subsídios é para fonte incentivada. Ao todo, somou R$ 11,853 bilhões. Na sequência, são R$ 11,813 bilhões concedidos à geração distribuída, de acordo com a Aneel.
“Temos uma estrutura de produção de energia razoavelmente favorável. Temos uma variedade de fontes e um parque instalado de transmissão que consegue transferir energia de uma região para outra, mas tudo isso foi construído com base em uma série de subsídios que, talvez, em algum momento, fossem necessários”, diz Paulo Cunha, pesquisador da FGV Energia.
“Com o passar do tempo, esses subsídios foram se perenizando, foram se eternizando, e a sociedade não teve capacidade de suspender esses benefícios”, acrescenta.
Quando um subsídio é criado ou renovado, isso se traduz em uma conta a mais para uma parcela da população, porque uma parte dos consumidores terá de pagar mais para sustentar o benefício em vigor.
“Alguns (subsídios) têm justificativas importantes, como financiar descontos para famílias de baixa renda ou universalizar o acesso à eletricidade no País, mas a conta de luz também conta com encargos questionáveis”, afirma Ravi Fochi, analista em planejamento e inteligência de mercado da PSR.
Dona de grande parte dos subsídios, a geração distribuída ajuda a explicar em grande medida o fato de o Brasil ter uma geração maior do que a demanda. A disparada do uso da energia solar criou uma série de distorções e não foi acompanhada de planejamento cuidadoso nem de políticas que garantam sua expansão de forma equilibrada e sustentável.
Atualmente, o ONS, responsável por decidir quais usinas devem gerar energia e quais precisam reduzir a produção, de acordo com a oferta e a demanda, vem perdendo parte desse controle devido ao avanço da geração distribuída, que injeta energia diretamente na rede de distribuição.
A complexidade do sistema, causada pelo avanço descontrolado, ficou evidente no Dia dos Pais. Em 10 de agosto, para evitar um colapso, dado que o cenário era de aumento de produção e queda do consumo por causa da data comemorativa, cerca de 90% da geração precisou ser cortada e várias usinas foram desligadas.
“Esse desequilíbrio entre a carga que não cresceu e a oferta que cresceu assustadoramente explica boa parte dessa questão desse alto custo da energia”, afirma Cunha.
A geração distribuída alcança cerca de 20 milhões de brasileiros, e a oferta também é maior entre 10h e 16h. Ou seja, as usinas e painéis solares geram muita energia num horário em que o consumo é baixo. No fim da tarde e no início da noite, quando essas unidades já não geram mais energia pela falta do sol, a demanda começa a crescer e exige que usinas térmicas, algumas poluentes e mais caras, entrem em operação, encarecendo o sistema.
Antes, com um modelo mais baseado em hidrelétricas, o País conseguia gerar eletricidade de forma consistente em qualquer momento do dia.
“Hoje, embora tenhamos energia barata e abundante nas horas com disponibilidade de sol e vento, o suprimento seguro no início da noite (momento de pico na demanda) necessita de usinas termoelétricas e outros recursos com custos elevados”, afirma Ravi Fochi.
Há ainda um terceiro fator relacionado à questão geográfica. A maior parte da geração de energia renovável está no Nordeste, mas o consumo é maior no Sudeste. “Essa diferença regional torna inviável o escoamento de toda a energia produzida ao longo do dia, gerando desperdícios e custos adicionais ao sistema”, diz Fochi.
Uma crítica de especialistas é que quase todos os desequilíbrios do setor elétrico são repassados para o consumidor. Isso é histórico. Ocorreu com os efeitos do racionamento de 2001, quando as empresas precisaram de empréstimos para suportar a queda na demanda, e pode ocorrer agora.
Ainda não se sabe qual será a solução para os prejuízos causados pelo “curtailment” (corte de energia de determinadas usinas). Mas, jogar alguma taxa para a conta de luz, sempre tem sido uma solução no setor. “O excesso de energia ocorreu por causa dos subsídios para os painéis solares nas residências e para os consumidores do mercado livre, que não pagam muitos dos penduricalhos do setor”, diz Nivalde Castro.
Estadão Conteúdo