RICARDO DELLA COLETTA
FOLHAPRESS
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propôs um corte drástico no Focem, o fundo de redução de assimetrias do Mercosul, e entrou em choque com Uruguai e Paraguai -historicamente os maiores beneficiários do mecanismo.
O Focem foi criado em 2004 com a meta de receber US$ 100 milhões por ano para financiar projetos de infraestrutura nos países do bloco, com foco na integração das áreas de fronteira. A proposta brasileira para a segunda etapa do mecanismo, chamada de Focem 2, é reduzir o montante anual para cerca de US$ 30 milhões, além de novas regras sobre a repartição do bolo entre os sócios.
Como país mais rico do Mercosul, o Brasil é o maior doador do fundo.
Os integrantes do Mercosul precisam concordar com os termos da renovação do Focem quando os recursos da primeira etapa se esgotarem, o que deve ocorrer nos próximos anos.
Como a reestruturação do fundo depende da aprovação dos Legislativos dos países do bloco, o que pode se arrastar por tempo indeterminado, o governo Lula deu início às negociações para a atualização do mecanismo no início de outubro, com a circulação de uma proposta do que seria o Focem 2.
Além de montante total inferior ao atual, o governo Lula, na presidência temporária do Mercosul, apresentou aos sócios novos porcentuais do que cada país deveria doar e receber. O argumento é que os maiores beneficiários, Paraguai e Uruguai, registraram avanços sociais e econômicos nas últimas décadas, razão pela qual deveriam contribuir mais e ganhar menos.
Além do mais, na visão do Brasil, o ingresso da Bolívia no Mercosul também exige uma redistribuição do bolo -uma vez que o o país andino é o mais pobre da América do Sul, segundo diferentes indicadores.
O anteprojeto brasileiro foi recebido com fortes críticas por Paraguai e Uruguai, que disseram que ele envia um “sinal negativo do processo de integração regional”. O rechaço de Montevidéu e Assunção ficou registrado na ata de uma reunião do GMC (Grupo Mercado Comum), fórum de negociação do Mercosul, ocorrida nos dias 8 e 9 de outubro em Brasília.
“[As delegações de Uruguai e Paraguai] expressaram que a proposta [brasileira] se baseia principalmente em indicadores de desenvolvimento que não refletem as assimetrias existentes, não contempla os esforços realizados pelas economias menores em função dos avanços alcançados. Nesse sentido, ambas as delegações expressaram preocupação com a proposta brasileira, em particular com a drástica redução do fundo e com os cálculos utilizados para definir as contribuições e benefícios, que impossibilitam o apoio à proposta”, diz o registro da reunião.
“Da mesma forma, manifestaram que a redução do fundo a um terço do Focem 1 debilita política e economicamente o principal mecanismo de coesão estrutural do bloco e envia um sinal negativo do processo de integração regional”.
Segundo integrantes do governo Lula ouvidos pela Folha, o valor de US$ 30 milhões inicialmente sugerido ainda é inicial e pode ser alterado na medida em que as negociações avançarem.
Desde a instituição do fundo até o final do ano passado, de acordo com cálculos do governo da Argentina, foram aprovados mais de 50 projetos com recursos do Focem, um valor aproximado de US$ 996 milhões.
Pelas regras atuais, o Brasil doa 70% dos recursos, seguido pela Argentina (27%). Ao Uruguai cabe contribuir com 2% e, ao Paraguai, 1%.
Os beneficiários seguem ordem inversa. O Paraguai recebe 48% dos recursos do Focem 1, o Uruguai 32%, enquanto Brasil e Argentina ficam com 10% cada.
Pela nova proposta brasileira, o Brasil seria responsável por contribuir com cerca de 57,1% do total do Focem 2. A Argentina aportaria 21,4%, ao passo que Uruguai e Paraguai também pagariam mais (8,3% e 6,9%, respectivamente). A Bolívia, novo membro do Mercosul, teria que doar 6,2%.
Na distribuição dos benefícios, ainda de acordo com o anteprojeto do governo Lula, a Bolívia seria a principal receptora (quase 26%). O Paraguai ficaria com 23% do total e o Uruguai, com 21%. Já a Argentina seria destino de pouco mais de 15,1% dos recursos e o Brasil, uma proporção ligeiramente inferior (15%).
O governo do Paraguai, liderado por Santiago Peña, ficou de elaborar uma contraproposta à minuta brasileira.
A oposição de Paraguai e Uruguai não é o único obstáculo para a renovação do Focem. A Argentina, governada pelo ultraliberal Javier Milei, cético do Mercosul e cujo bordão é “no hay plata” (não há dinheiro, em português), defende uma abordagem considerada inviável por membros do governo Lula.
De acordo com pessoas que acompanham o assunto, Buenos Aires advoga que o setor privado e entidades como o Fonplata (Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata) possam financiar obras no âmbito do Focem. O governo Lula avalia que isso desvirtuaria o propósito do fundo, que depende dos orçamentos públicos e, portanto, envolve contribuições não reembolsáveis.
O governo Milei também apresentou cálculos que fariam da Argentina receptora líquida de recursos do Focem, o que deixaria o Brasil como único país que efetivamente contribui com mais dinheiro do que recebe.
Procurados, o Ministério do Planejamento, responsável pela elaboração do Focem 2, e o Itamaraty não comentaram.