KLAUS RICHMOND
FOLHAPRESS
A cabeleireira Maria (nome fictício), 38, conta que nada voltou a ser como antes na casa em que mora com o marido e os filhos em Guarulhos, na Grande São Paulo, após os ocorridos do último domingo (19).
O filho de 12 anos, atleta do Manthiqueira, ainda não conseguiu voltar aos treinos de futebol desde que ouviu da mãe de um rival, na arquibancada do Estádio Municipal Professor Dario Rodrigues Leite, em Guaratinguetá, a frase “preto filho da p… sem família”.
O nome da mãe será omitido pela reportagem para preservar a identidade da criança.
Aos prantos, o menino se sentou no campo e relatou o ocorrido ao árbitro Guilherme Drbochlaw, que interrompeu a partida com o protocolo antirracismo. Uma mulher de 41 anos foi identificada e presa.
O caso reverberou mundialmente, com recente manifestação do presidente da Fifa, Gianni Infantino, se dizendo “enojado” pelo episódio ocorrido no Campeonato Paulista sub-12.
“Às vezes o pego chorando. Ele tenta demonstrar força, do tipo ‘está tudo bem, não estou ligando’, mas percebo o quanto está sofrendo. Meu filho não quer mais ir aos treinos. Voltou à escola na terça [21], ainda com medo. E eu o entendo, o esporte não é para machucar assim. Não preciso que se torne jogador para sustentar a casa. Vou pedir para dar baixa no registro dele no Corinthians [onde joga futsal]”, disse a mãe à reportagem.
“Não acredito que tomarão medidas, mas espero, de coração, que seja a última criança a sofrer com isso no futebol”, completa.
Segundo ela, as ofensas não são novidade -já vinham ocorrendo há algum tempo, motivadas pela insatisfação de pais de outros atletas da categoria, descontentes com a chegada do garoto ao time por indicação do antigo treinador do clube.
Embora seja atleta do Manthiqueira no futebol de campo, o adolescente ofendido divide a rotina jogando futsal no clube da capital paulista pela mesma categoria.
“A conversa deles era que meu filho não merecia estar ali. Chamavam de lixo, gritavam ‘quebra ele’. Eu já nem entrava dentro do clube, ficava só dentro do carro esperando. Há muito tempo ele pede para não ir treinar”, relata.
A chegada ao Manthiqueira ocorreu neste ano, após sua dispensa do futebol de campo do Corinthians. Apesar de o clube ter sede em Guaratinguetá, o sub-12 e outras categorias treinam em parceria com o técnico Léo Deva, em Guarulhos, por conta das dificuldades financeiras.
Em outro jogo recente entre as mesmas equipes, em Guarulhos, o menino já havia sido alvo de insultos.
“Um atleta do Corinthians, [isso] está no vídeo da transmissão, coloca o dedo na cara do meu filho depois de uma falta e o xinga: ‘levanta, seu safado, seu filho da p…’. Tudo apoiado por pais que deveriam apenas incentivar. É algo inconcebível num campeonato de meninos de 12 anos”, conta a mãe.
“O caráter e a personalidade são formados em casa, pelos pais. O que essas crianças vão ser amanhã, vendo esse tipo de comportamento? É com isso que a gente se preocupa”, acrescenta.
A mãe conta que, no dia do jogo, não ouviu as ofensas pela distância entre torcidas das duas equipes. “Só tivemos ciência quando o juiz acionou o protocolo. Até então, acreditava serem mais xingamentos, como sempre”, explica.
O episódio poderia ter terminado de forma ainda pior. Ela conta que a mulher de 41 anos que proferiu as injúrias raciais tentou fugir após ser responsabilizada. A fuga só não se concretizou, segundo ela, porque o próprio garoto pulou em cima do carro para evitar que o veículo andasse.
“Ele tomou essa atitude, meu filho é muito corajoso”, recorda, orgulhosa.
Em vídeo mostrado pela família à reportagem, é possível vê-lo chorando copiosamente no estacionamento, sendo consolado por diversas mães e pais do Manthiqueira.
Um deles diz: “olha o estado da criança”, incentivando a conduzir o caso à delegacia. Ainda aos prantos, o adolescente tenta identificar quem foram os adultos que o ofenderam, citando nomes.
Maria ainda relata que tentou conversar com a mulher conduzida à delegacia. Segundo a mãe, “ela não se justificou e nem tentou um pedido de desculpas”. O TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) concedeu liberdade provisória à suspeita.
Mesmo assim, a família não pretende buscar reparação judicial: “minha tia é advogada, mas não temos intenção de ampliar isso ou aparecer. Diversos escritórios me procuraram, muita gente falou da exposição da nossa imagem, mas minha única intenção é cuidar da mente dele. Só quero que não cometa o mesmo erro ou desista do sonho dele”, diz.
A mãe e a família ainda buscarão acompanhamento psicológico para o adolescente. Antes de ser chamado de “preto”, ele já era alvo de apelidos de teor xenófobo.
“Ele diz que não liga, mas eu vejo que afeta, já é algo que está na cabecinha dele. Preciso lutar pela minha família”, afirma.
O fundador e hoje técnico do Manthiqueira, Dado de Oliveira, se reuniu nesta quarta-feira (22) com o departamento jurídico da FPF (Federação Paulista de Futebol). Ainda não há medidas formais. O Corinthians, clube em que o atleta atua no futsal, não se pronunciou e nem procurou a família.