JÉSSICA MAES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Transpor fronteiras e usar cursos d’água como instrumento para reconectar e proteger ecossistemas da América do Sul. O objetivo ambicioso é da Iniciativa Rios da Onça-Pintada, que pretende criar corredores ecológicos ao longo de 2,5 milhões de km² em um polo de biodiversidade que passa por Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai.
Lançado nesta quarta-feira (24), em evento da Semana do Clima de Nova York, o projeto busca trazer de volta espécies-chave, fortalecer comunidades locais e incentivar a criação de áreas protegidas, tanto públicas como privadas, na bacia do rio Paraná. A ideia é usar os rios Paraguai, Iguaçu, Paraná, Pilcomayo e Bermejo e as florestas que os cercam como conectores onde os animais possam circular e buscar refúgio.
Idealizada pela renomada conservacionista Kris Tompkins, a iniciativa será conduzida por quatro organizações sem fins lucrativos, uma de cada país integrante: Onçafari (Brasil), Fundação Rewilding Argentina, Nativa: Natureza, Terra e Vida (Bolívia) e Fundação Moisés Bertoni (Paraguai).
O projeto divide o território em quatro categorias: “arcas” (núcleos de áreas protegidas, com biodiversidade muito alta), zonas de amortecimento (onde podem ser desenvolvidas atividades sustentáveis, como pecuária adaptada), “trampolins” (fragmentos de habitat a cada 150 km para dispersão das espécies) e rios com seus alagados.
“Quando falamos de ligar, por exemplo, a Argentina até o norte do pantanal, atravessando o Paraguai inteiro, é impossível ter toda essa área integralmente protegida. Por isso, vamos usar esses trampolins”, explica Mario Haberfeld, fundador do Onçafari.
A área abrangida pelo projeto será de 1,2 milhão de km² no Brasil, concentrada no pantanal, em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, e na mata atlântica, no Paraná -região onde a onça-pintada está criticamente ameaçada.
Protagonista do projeto, a onça é o maior felino das Américas e, historicamente, podia ser encontrada do sudoeste dos Estados Unidos ao norte da Patagônia argentina. Hoje, no entanto, estima-se que a espécie ocupe menos da metade do seu território original.
No Brasil, ocorre em quase todos os biomas (exceto o pampa), mas nos últimos 27 anos, estima-se que a sua população caiu 30% –e um declínio equivalente pode ser projetado para as próximas três décadas. O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) classifica a onça-pintada como vulnerável à extinção.
Entre as principais ameaças à espécie estão a perda e fragmentação de habitat associadas à expansão agrícola, mineração e obras de infraestrutura e energia, além da caça.
Predadoras do topo da cadeia alimentar, as onças precisam de um território grande, ocupando uma área de 10 km² a 260 km² ao longo de sua vida, de acordo com o ICMBio -o que exemplifica a importância de evitar a fragmentação de ecossistemas.
Os corredores da iniciativa na mata atlântica serão localizados na região do Parque Nacional do Iguaçu, que se divide entre Brasil e Argentina.
“Ali existe uma boa população de onça, mas elas estão ‘confinadas’ a esse parque. Vários estudos mostram que isso é um grande problema para a diversidade genética das onças”, diz Haberfeld. O plano é criar um corredor até outras áreas de conservação, especialmente argentinas, para ampliar a troca de genes.
“É um lugar difícil para isso, já muito populoso e desenvolvido. Mas o Onçafari tem intenção, do lado brasileiro, de comprar mais terras e destiná-las à conservação e também de estimular outros proprietários de terras a fazerem o mesmo, criando RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural)”, afirma o conservacionista.
Esse modelo privado de unidade de conservação oferece vantagens fiscais aos proprietários, além de ser permitido o uso da área pesquisas científicas e visitação com fins turísticos e educacionais.
“É importante também envolver a população local, sejam indígenas ou ribeirinhos, e criar uma economia de natureza, com ecoturismo ou outras atividades, para que essas populações se beneficiem da iniciativa”, ressalta.
Embora a onça-pintada seja o símbolo do projeto, o objetivo é restaurar a biodiversidade como um todo. Entre as espécies-chave estão também ariranhas, antas, cervos-do-pantanal e aves dispersoras de sementes, essenciais para a regeneração de habitats.
Haberfeld conta, ainda, que o corredor ecológico já está praticamente estabelecido no norte do pantanal, por meio de várias áreas conservadas: o Parque Estadual Encontro das Águas, o Parque Nacional do Pantanal, várias reservas privadas (incluindo do próprio Onçafari), a Terra Indígena Kadiwéu e o Parque Nacional da Bodoquena, já próximo ao Paraguai.
Ali, o foco da atuação deve ser a prevenção de incêndios florestais, com os quais o bioma vem sofrendo cada vez mais, à medida que as secas na região se intensificam e se prolongam.
“Após uma seca de quatro anos, tivemos bastantes incêndios, muitos deles vindo da Bolívia. Por isso, estamos trabalhando com a ONG Nativa na prevenção de incêndios binacionais”, conta, acrescentando que pretendem articular ações com os governos de ambos os países para que brigadistas brasileiros possam ajudar no combate aos focos em território boliviano.
Os recursos para a execução do projeto devem vir de uma campanha de financiamento privado. Segundo os organizadores, já há compromissos de doadores brasileiros e estrangeiros de US$ 28 milhões (cerca de R$ 150 milhões), aproximadamente um terço do orçamento operacional para os primeiros três anos.