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Brasil

Obra de Tarsila do Amaral roubada no Rio valia meia Kombi em 68

Mas o marco fundador da redescoberta de Tarsila foram as retrospectivas marcando os 50 anos de sua obra

FolhaPress

10/08/2022 21h42

Foto: Reprodução/WEB

Francesca Angiolillo
São Paulo, SP

Tarsila do Amaral não teria sonhado com os valores que sua obra atingiria quase 50 anos após sua morte. Quando, na década de 1960, o incipiente mercado de arte nacional começava a investir em seus trabalhos, um quadro seu podia valer quase tanto quanto um aparelho de som. Ou menos da metade de uma Kombi usada.

Apreendidas na manhã desta quarta-feira (10) no Rio de Janeiro, “O Sono” e “Sol Poente”, ambas de 1929, e “Pont Neuf”, de 1923, foram avaliadas em R$ 300 milhões, R$ 250 milhões e R$ 150 milhões.

A valorização de Tarsila começou em 1961, com uma de suas poucas mostras individuais em vida, realizada na Casa do Artista Plástico, em São Paulo. A partir daí, sua produção começou a entrar com mais vigor em coleções privadas.

Mas o marco fundador da redescoberta de Tarsila foram as retrospectivas marcando os 50 anos de sua obra, organizadas por Aracy Amaral em 1968, primeiro no Museu de Arte Moderna no Rio e depois no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo.

As três telas apreendidas no Rio hoje, subtraídas num caso rumoroso por Sabine Boghici de sua mãe, Geneviève Boghici, foram expostas naquela ocasião –na época, ainda não pertenciam à coleção do marchand romeno Jean Boghici, morto em 2015.

Aracy levantou uma lista representativa de todos os períodos da carreira de Tarsila –que era tema de seu doutorado, depois publicado como “Tarsila do Amaral: Sua Obra e Seu Tempo”.

A crítica de arte e curadora moveu céus e terra para reunir os quadros, o que incluiu uma negociação algo difícil com o Museu de Arte Moderna carioca, que achava muito altos os valores requeridos pelos colecionadores para o seguro das peças.

“O Sono” e “Sol Poente” foram avaliadas em NCr$ 30 mil –a moeda tinha perdido três zeros e passado de cruzeiro a cruzeiro novo no ano anterior. “Pont Neuf”, bem mais modesta, seria assegurada em NCr$ 5.000.

Tudo se comprava então a crédito, e as propagandas de lojas e classificados de jornal em dezembro de 1968, enquanto Aracy tentava colocar de pé a retrospectiva, dão uma ideia do que significavam os valores das obras.

Um estéreo Dominante Eco 7 da marca alemã Telefunken era anunciado, em uma promoção de Natal do extinto magazine Mesbla, em 24 parcelas de NCr$ 146 –um total de NCr$ 3.504.

Comprar o aparelho de som, com cinco faixas de onda e FM, cinco alto-falantes, câmara de eco, montado num “finíssimo móvel de jacarandá da Bahia”, exigia um desembolso não muito distante do que valia a tela mais antiga do trio.

Uma Kombi do ano anterior –parecida talvez à que transportava então Tarsila, adaptada para acomodar sua cadeira de rodas– podia ser financiada em dois anos em uma loja de veículos da Vila Mariana, a G.V.

Automóveis, por um total de NCr$ 11.446, mediante entrada de NCr$ 1.870 e 24 prestações de NCr$ 399.

“O Sono” e “Sol Poente” valiam menos que um “magnífico terreno plano” de 300 metros quadrados no Sumaré, bairro da zona oeste onde morava parte da família de Tarsila –o imóvel custava 50% mais que os quadros, NCr$ 45 mil.

Mesmo com todo o movimento de redescoberta de Tarsila, porém, a estimativa para as telas apreendidas no Rio supera qualquer expectativa para a obra da artista.

Dois anos atrás, um quadro seu, “A Caipirinha”, de 1923, bateu o recorde de trabalho mais caro de um artista brasileiro em uma venda pública, R$ 57,5 milhões, num leilão na Bolsa de Arte, em São Paulo.

O MoMA, museu nova-iorquino que é um dos templos mundiais da consagração da arte, adquiriu na mesma época “A Lua”, de 1928, contemporânea portanto de “O Sono” e “Sol Poente”. O valor da transação não foi divulgado, mas agentes do mercado estimam que tenha sido de US$ 20 milhões, equivalentes então a cerca de R$ 75 milhões.

Por isso, o mundo da arte se espantou não apenas com o caso em si.

Artista tardia, iniciada na pintura acadêmica já depois dos 30 anos de idade, Tarsila viu sua carreira florescer numa breve década, entre os anos 1920 e 1930, até hoje considerada seu auge pela crítica e pelo mercado.

Sua primeira exposição ocorreu em 1926, na galeria Percier, em Paris. Já se dera, então, o grande estalo de 1924, a “descoberta do Brasil” propiciada pela viagem que fizera, com outros modernistas, ciceroneando pelo Rio e por Minas Gerais o poeta Blaise Cendrars, seu grande introdutor no circuito artístico francês.

“Pont Neuf” é, portanto, um quadro anterior à fase pau-brasil que a consagraria e ao momento mais surrealista do momento antropofágico, ao qual pertencem “O Sono” e “Sol Poente” -posteriores ao “Abaporu”, de 1928, sua obra mais famosa e inauguradora daquela etapa do modernismo.

Mesmo o “Abaporu” ainda ocupava as paredes de seu apartamento, antes que as galerias que iam se consolidando no eixo Rio-São Paulo começassem a estocar arte modernista, nos anos 1960.

O apartamento, aliás, entre Higienópolis e Santa Cecília, na região central de São Paulo, foi adquirido por Tarsila com valores obtidos na venda de obras de arte de Picasso e Brancusi, que ela amealhou naqueles anos áureos de Paris.

Se os colecionadores que em 1968 detinham “O Sono” e “Sol Poente” quisessem, podiam, com o valor de uma ou outra, dar exatamente os NCr$ 30 mil demandados como entrada numa casa térrea na avenida Goiás, em São Caetano do Sul. As duas juntas, porém, não chegavam nos NCr$ 70 mil que pedia o vendedor pela propriedade.

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