LAURA MATTOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
A nova crise do Enem, que teve vazamento de perguntas e três questões anuladas, expõe problemas crônicos na produção do principal exame de ingresso ao ensino superior do país. As falhas de 2025, como as de anos anteriores, passam pelo baixo número de questões de provas armazenadas pelo Inep, o instituto ligado ao Ministério da Educação (MEC) que é responsável pelo Enem.
Uma das razões para a dificuldade de ampliar a quantidade de questões é a própria falta de estrutura e essa ampliação é considerada essencial para reduzir o risco de incidentes como o deste ano. O número de servidores do órgão caiu ao longo dos anos, e suas atribuições aumentaram.
Uma auditoria interna do Inep de 2023 falou em “problemas crônicos relativos à quantidade e à qualidade” das questões e da necessidade urgente de modernização do sistema tecnológico dessa área do Enem.
Procurado, o Inep não detalhou o tamanho do banco de questões e afirmou que está fazendo contratação de pessoal.
Vale resumo da crise deste ano: um estudante de medicina, Edcley Teixeira, que se apresenta na internet como consultor educacional e tem quase 37 mil seguidores no Instagram, antecipou, em uma live, dias antes das provas de matemática e ciências da natureza do Enem, ao menos três questões que caíram no exame com um detalhe ou outro de diferença, o conteúdo era praticamente igual. O fato viralizou nas redes, e o MEC, comandado pelo ministro Camilo Santana, decidiu anular as questões.
Ele afirmou ter participado do Prêmio Capes Talento Universitário, prova feita para alunos do primeiro ano de graduação, em que os melhores colocados ganham R$ 5.000. Disse que ficou sabendo pelo livro “O Roubo do Enem”, da jornalista Renata Cafardo, que esse prêmio era usado para testar previamente questões que são posteriormente utilizadas em provas do Enem. Cafardo foi responsável, em 2009, pelo furo de reportagem sobre o furto de cadernos de provas do Enem da gráfica onde o exame havia sido impresso.
O livro narra que o Inep criou, em 2012, um programa de bolsas em parceria com a Capes com a intenção de usar a prova de seleção para testar as questões do Enem. O programa se chamava Jovens Talentos para a Ciência e era voltado a estudantes do primeiro ano de graduação. Foi encerrado em 2014. O livro de Cafardo foi publicado em 2017, e o novo programa da Capes, semelhante ao anterior e do qual Teixeira participou, teve início em 2019. “Como o pré-teste do Enem é sigiloso, eu não sabia que um novo exame da Capes estava sendo usado novamente com esse objetivo”, disse Cafardo à reportagem.
“O que me incomodou é que o estudante deu a entender que o meu livro o teria ajudado a antecipar as questões, sendo que esse exame que ele fez nem existia naquela época.”
Teixeira foi procurado pela reportagem, mas negou os pedidos de entrevista.
Entender os pré-testes é essencial para o debate. As questões têm de ser testadas previamente porque, a partir da quantidade de acertos e erros dos alunos que participam desses testes, sabe-se quais são mais fáceis, intermediárias e difíceis. Com isso, é possível produzir provas diferentes, mas com um grau semelhante de dificuldade.
Todos os anos são produzidos três exames distintos do Enem, cada um deles com 180 questões: há o exame aplicado nacionalmente, há a prova aplicada em presídios (chamada de PPL) e há uma prova para emergências.
É preciso, portanto, ter anualmente 540 novas questões previamente testadas. Em 2025, haverá aplicação especial para três cidades do Pará em razão da COP30, um vez que que as datas do exame nacional coincidiram com a realização da conferência do clima da ONU. Já candidatos afetados pelo ciclone no Paraná neste mês poderão fazer a prova na mesma data do PPL.
A dificuldade para manter sigilo sobre esses pré-testes não é banal nem exclusiva desse novo caso. Há muitas pessoas envolvidas na aplicação das provas testes, que tem protocolos de segurança, como a devolução obrigatória dos cadernos de perguntas, e os vazamentos normalmente acontecem porque os estudantes conseguem decorar algumas questões.
Os prêmios da Capes, voltados a estudantes do primeiro ano de graduação, foram criados, inclusive, com a intenção de evitar que as questões fossem testadas em escolas do ensino médio, principal público do exame. Em 2011, um professor de Fortaleza avisou seus alunos que uma prova que eles estavam fazendo na escola era um pré-teste de questões do Enem.
A redução do risco de vazamentos passa pela necessidade de se ampliar o banco de questões (o BNI, Banco Nacional de Itens). As perguntas são elaboradas por professores universitários selecionados pelo Inep, avaliados por técnicos do instituto e depois entram nos pré-testes.
O Inep não revela a quantidade de itens do banco. Uma estimativa extraoficial era de 2.000 itens, isso nos primeiros anos do Enem (que foi criado em 1998, mas a partir de 2009 começou a ser usado para a seleção para vagas nas universidades).
Já era um número considerado muito baixo, e o caso de antecipação das questões neste ano reforça a ideia de que o Inep estaria trabalhando com o BNI abaixo disso, no limite das 540 questões usadas anualmente. Isso porque o estudante de medicina afirma que participou dos pré-testes em 2023 e em 2024, e que havia questões que foram aplicadas agora, no Enem de 2025.
Quanto maior a quantidade de itens, menor seria a chance de uma questão decorada por um estudante em um pré-teste ser escolhida para uma prova do Enem, especialmente tão próxima.
Professor de economia da USP, Reynaldo Fernandes era presidente do Inep em 2009, quando o exame passou a valer como vestibular, no fatídico ano do furto da prova. Ele diz que, desde aquela época, “o banco era pequeno”. “A gente não conseguia acumular itens. Além da dificuldade dos processos administrativos para contratar os responsáveis pela produção de questões, as provas são divulgadas, o que impede a reutilização desse conteúdo em anos posteriores”, afirmou à reportagem.
“O ideal seria um banco de uns 30 mil itens. Não há risco zero, mas, com essa quantidade, a chance de vazar do pré-teste é muito pequena.”
Renato Santos, presidente da Associação de Servidores do Inep, afirma que a falta de estrutura do órgão é pano de fundo dessa e de outras crises do Enem. Em 2014, havia no instituto 441 servidores ativos e, em 2024, eram 297. Nesses dez anos, a demanda de trabalho aumentou.
Santos listou 17 novas atribuições dadas ao Inep no período, como o monitoramentos das metas do PNE (Plano Nacional de Educação), avaliação anual das licenciaturas e da formação de medicina por meio do Enade e avaliação da educação infantil.
Ele afirma que um dos recursos é recorrer a profissionais terceirizados, mas que “as atividades realizadas pelo Inep são muito complexas e leva tempo para que as pessoas sejam formadas para exercê-las”.
O Inep diz que trabalha na contratação de pessoal. “No Primeiro Concurso Nacional Unificado, em 2025, foram oferecidas 50 vagas para pesquisador-tecnologista; 34 servidores já tomaram posse e há previsão de nomeações que totalizam 62”, afirma o órgão.
Sobre a auditoria interna, declara que conduz estudos técnicos para a atualização do software que organiza e gerencia as questões e ressalta que o relatório “não aborda conteúdo, tamanho ou qualquer aspecto do Banco Nacional de Itens”.