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Justiça suspende licenciamento ambiental da Samarco e inova ao citar mudanças climáticas

A ação foi protocolada em julho pelo coletivo Loucos por Bento, formado por ex-moradores do distrito de Bento Rodrigues, um dos dois que foram destruídos pela enxurrada de lama há dez anos

Redação Jornal de Brasília

23/12/2025 8h55

justiça da holanda marca audiência sobre caso samarco

Antonio Cruz/ Agência Brasil

PEDRO LOVISI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Em uma decisão inédita, a Justiça Federal suspendeu na semana passada o licenciamento ambiental que a mineradora Samarco havia conseguido com órgãos reguladores de Minas Gerais para ampliar seu complexo minerário em Mariana – o mesmo que colapsou em 2015, matando 19 pessoas e causando o maior desastre ambiental do país.

Na decisão, a juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho acatou argumentos de organizações da sociedade civil de que a mineradora não considerou, em seu estudo de impacto ambiental, um volume de chuvas atípico que pode ser gerado pelo aquecimento global. Essa é a primeira vez que o poder Judiciário suspende o licenciamento ambiental de um projeto minerário citando riscos atrelados às mudanças climáticas.

Por meio de nota, a Samarco disse que não foi intimada da decisão. “Confiamos na legalidade e na legitimidade do processo de licenciamento do projeto de longo prazo conduzido pelos órgãos competentes, certos de que sua robustez técnica e conformidade legal serão confirmadas”, afirmou. A empresa pode recorrer.

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais também afirmou que não foi notificada da decisão e que “reitera seu compromisso com a correta aplicação das normas ambientais, com o fortalecimento da gestão municipal e com a proteção do meio ambiente”.

A ação foi protocolada em julho pelo coletivo Loucos por Bento, formado por ex-moradores do distrito de Bento Rodrigues, um dos dois que foram destruídos pela enxurrada de lama há dez anos. Com pareceres técnicos de organizações ambientais, os autores argumentaram que o estudo de impacto do projeto Longo Prazo, da Samarco, leva em conta apenas séries históricas de precipitação, subestimando a probabilidade de chuvas futuras serem mais fortes.

O processo de licenciamento ambiental para atividades minerárias em Minas Gerais não exige a apresentação dessas estimativas. A legislação, apoiada em uma resolução de 2022 da ANM (Agência Nacional de Mineração), prevê que as empresas donas dos empreendimentos a serem licenciados calculem, com base em uma base de dados pré-existente, qual foi a chuva máxima na região nos últimos 10 mil anos –e é esse índice que baseia a análise técnica sobre qual deve ser a rigidez das estruturas instaladas.

Em Minas Gerais, essas avaliações são feitas por órgãos ligados ao governo estadual, como a Feam (Fundação Estadual de Meio Ambiente) e o Copam, conselho responsável por aprovar o licenciamento ambiental.

No caso do projeto da Samarco, relatório técnico encomendado pelo Ministério Público de Minas Gerais diz que a empresa considerou dados de precipitação em Ouro Preto (cidade vizinha de Mariana) entre 1961 e 1990 para modelar a chuva máxima provável para a região. Nesse caso, a precipitação máxima foi de 400 milímetros em um dia, abaixo por exemplo do volume registrado em algumas cidades do Rio Grande do Sul durante as enchentes do ano passado e do que o registrado em São Sebastião em 2023.

“Os estudos ambientais apresentados no processo de licenciamento não consideraram como as mudanças climáticas –com possibilidade de aumento das ocorrências de eventos extremos– afetarão o ciclo hidrológico”, diz o relatório. “Ou seja, não foram elaborados estudos ambientais que utilizam metodologia mais complexa, que integram dados históricos com cenários futuros, e também não foi utilizada a abordagem de adaptação dos efeitos adversos da mudança do clima.”

Um outro relatório acoplado à ação, assinado pelo cientista Mark Chernaik, da Environmental Law Alliance Worldwide, diz haver alto grau de certeza de que o ciclo hidrológico em Minas Gerais durante os anos de 2029-2037 (período de operação do empreendimento que a Samarco quer ampliar) será diferente dos padrões de ciclo hidrológico histórico.

O projeto da Samarco em questão prevê a construção de uma barragem e de uma pilha de rejeitos –essa última é formada por rejeitos secos. O empreendimento é tido como essencial para os planos de expansão da mineradora, uma joint venture entre a Vale e a BHP que, antes da tragédia de Mariana, era uma das maiores produtoras do Brasil de minério de ferro.

De acordo com especialistas, a decisão abre brecha para que outros licenciamentos ambientais sejam revistos pela Justiça, o que poderia desencadear queixas constantes de mineradoras.

“A falta de previsibilidade para o setor produtivo tem se tornado um risco muito grande. Eu questiono até que ponto isso precisa ser levado para o Judiciário, porque estamos tirando de um órgão técnico e levando para o Judiciário, que não tem condição técnica”, afirma Regina Barbosa, advogada especialista em direito ambiental e minerário.

“Com o Judiciário intervindo nesse processo, o órgão regulador vai ter que acelerar isso para que as decisões tenham validade, porque isso acaba enfraquecendo a própria autoridade técnica do órgão”, acrescenta.

Na decisão, a juíza pontua que a ação serve ao propósito de questionar a legalidade e a legitimidade de atos já praticados. Ela ainda citou que as barragens de Mariana e Brumadinho que romperam em 2015 e 2019, respectivamente, também haviam sido licenciadas pelo Poder Público seguindo parâmetros técnicos considerados adequados à sua época.

O tom adotado pela juíza foi bastante celebrado por organizações não governamentais e ambientalistas. Julio Grilo, ex-superintendente do Ibama em MG e vice-presidente do Fórum Permanente São Francisco, diz esperar que a decisão influencie outros casos.

“A crise climática tem gerado eventos extremos de chuva com volumes muito superiores aos que estamos acostumados, então estamos lidando com o imprevisível. Mas tem coisas que a gente pode fazer, como no mínimo dobrar os valores que se tem hoje de precipitação nos estudos de impacto”, afirma. “Hoje, se uma barragem romper como decorrência de um evento extremo de chuvas, as mineradoras podem dizer que seguem a legislação e que o rompimento foi devido a uma chuva que não estava prevista.”
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