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Brasil

Indígenas dizem que não foram ouvidos sobre obras da BR-319, que corta Amazônia

A expectativa gerada pela licença, diz, tem o potencial de acirrar os ânimos entre aqueles que são a favor e os que são contra

FolhaPress

16/08/2022 18h44

Foto: AFP/Divulgação

João Gabriel
Brasília, DF

Comemorada por políticos, a licença prévia emitida pelo Ibama para a reconstrução de um trecho da BR-319 -estrada que liga Manaus a Porto Velho, cortando o coração da Amazônia- tem sua legalidade contestada por ambientalistas e indígenas.

Organizações e lideranças de povos da região disseram à reportagem que não houve a devida consulta prévia às comunidades locais para a obra. O consentimento é obrigatório pela lei brasileira, mas sua efetivação esbarra na ausência de regulamentação detalhada.

A reconstrução do chamado “trecho do meio” da rodovia, que tem cerca de 400 km, está em pauta há cerca de 15 anos. Sua licença, no entanto, sempre foi barrada pela falta de um EIA-Rima (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental) que comprovasse sua viabilidade.

Em 2019, o governo Bolsonaro encomendou um novo estudo, dessa vez aprovado -e comemorado pelo presidente-, permitindo que o Ibama emitisse a licença prévia no último dia 28.

“Nós, Parintintins das Terras Indígenas Nove de Janeiro e Ipixuna, fomos ouvidos dentro do estudo de componente indígena [competência da Funai, a Fundação Nacional do Índio], que já é dentro do processo de licenciamento, mas não foi feita nenhuma consulta prévia, antes de começar o processo de licenciamento. Não veio ninguém. Quando veio, foi para construção do estudo”, questiona Raimundo Parintintin, coordenador do povo na região, à reportagem.

Já segundo os Apurinã, nem sequer durante o estudo de componente indígena houve diálogo.

“Não teve um estudo do componente indígena diretamente com meu povo, apenas uma apresentação rápida na Terra Indígena São João e Tauamirim. Nós não nos sentimos [consultados]. Não houve consulta livre, prévia e informada”, relatou o cacique Zé Bajaga, coordenador geral da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus.

Segundo a declaração sobre os direitos dos povos indígenas da ONU (Organização das Nações Unidas), da qual o Brasil é signatário, a consulta é necessária “antes de aprovar qualquer projeto que afete as suas terras ou territórios e outros recursos”.

“Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa-fé, com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas para obter seu consentimento prévio, livre e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”, diz o artigo 19 do documento.

A consulta também está prevista na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil, que foi ratificada como lei nacional em 2004.

No entanto, nunca houve regulamentação detalhada do procedimento para dizer, por exemplo, o quão prévia deve ser feita a consulta -por isso, diversos casos semelhantes ao atual acabam na Justiça.
Em uma reunião para debater a BR-319, em maio -antes da emissão do documento pelo Ibama-, a coordenadora de licenciamento ambiental da Funai, Carla Fonseca de Aquino Costa, afirmou que considerava como consulta a apresentação do estudo de componente indígena, feita pela fundação e pelo Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).

“A gente fez a consulta, a gente fez a oitiva, apresentou os estudos. Então, além de livre, prévia e de boa-fé, ela foi informada”, disse no encontro, que ficou gravado.

Mas para Ailton Dias, coordenador do programa de ordenamento territorial do Instituto Internacional de Educação do Brasil (associação fundada em 1998, apoiada por 20 entidades e dedicada à formação e produção de conteúdo relacionado à gestão territorial, ambiental e financeira), a consulta deve ser anterior ao estudo de impacto ambiental -no qual está inserido o componente indígena, que já faz parte do processo de emissão da licença.

“A consulta tem que ser feita antes do EIA-Rima, e ela é livre e prévia. O grupo tem que se manifestar para dizer como ele acha que deve ser consultado. Essa pergunta não foi feita. E em algum momento o povo indígena tem que emitir o documento de consentimento, uma declaração do povo indígena com um posicionamento, que também não existe”, afirmou.

Em nota, o Observatório da BR-319, (organização fundada em 2017 e composta por 12 entidades do setor ambiental e voltada para o monitoramento e no estudo de temas relacionados à rodovia), afirma ainda que a consulta não poderia contar com a presença de órgãos interessados no estudo, como o Dnit, “uma vez que ele guarda posição de interesse em uma consequência específica”.

A entidade afirma que não é contra a reconstrução da rodovia, mas que ela precisa seguir os procedimentos necessários para não causar impacto socioambiental negativo.

A reportagem questionou a Funai, o Ibama e o Dnit, mas não teve resposta.

Para Afonso Lins, ex-superintendente do Dnit na gestão Bolsonaro que esteve ligado às discussões da BR-319 e atualmente presidente do Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) no Amazonas, o estudo do componente indígena respeitou a necessidade de consulta.

“O estudo foi orientado pelos próprios indígenas, inclusive a empresa que fez o estudo contratou os antropólogos indicados por eles. Todo o estudo seguiu o termo de referência emitido pela própria Funai, a qual acompanha todo o estudo, consulta e comunicação com os indígenas”, afirmou.

Ele afirma que um dos principais obstáculos para o combate à Covid no estado foi a falta de uma via terrestre que chegue a Manaus e defende ser possível conciliar a obra e a preservação ambiental.

“A BR-319 pode se tornar um modelo de sustentabilidade. No projeto está previsto passagem de fauna área, passagens subterrâneas, recuperação de áreas degradas, plantio de mudas nativas, sistemas de drenagem para preservar a pista”, diz.

IMPACTO AMBIENTAL E PERÍODO ELEITORAL

A licença prévia concedida à BR é criticada ainda por não apresentar as garantias necessárias para a proteção do meio ambiente da região -os próprios estudos feitos apontam para o risco de aumento de grilagem.

“Essa medida, evidentemente eleitoreira, com clara motivação política, ignora etapas importantes do processo de licenciamento, violando direitos dos povos da floresta e comprometendo pilares importantes da democracia”, afirmou o Observatório BR-319 em avaliação sobre o tema.

O documento prevê apenas três unidades de fiscalização para os cerca de 400 km do trecho rodoviário. Para Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e diretora do Observatório do Clima, isso é insuficiente para prevenir o desmatamento.

O desmatamento, explica, não é causado apenas pela obra em si, mas pelo chamado efeito “espinha de peixe” -as rotas que se abrem a partir da rodovia, com a maior facilidade de acesso.

“Eles alegam que a forma de controlar o desmatamento vão ser as áreas de preservação que já existem, mas que hoje não têm estrutura, gente, nem dinheiro para funcionar”, completa.

Ela alerta ainda que, por mais que ainda faltem etapas burocráticas para que a construção de fato comece, a licença prévia é o principal passo para a liberação de uma obra com impactos ambientais.

“A licença prévia atesta a viabilidade do empreendimento. Então, primeiro, deveria se estruturar as unidades de conservação, colocar gente trabalhando, criar uma integração entre diferentes órgãos de fiscalização na região, definir quanto vai destinar de recursos para a área Se tivesse isso, você poderia pensar que a reconstrução é viável, mas não tem isso na licença”, afirma ela.

Carlos Durigan, mestre pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e membro do Observatório BR-319, afirma que a entidade entende que há uma demanda legítima pela melhora nas condições de deslocamento, mas que o processo precisa cumprir requisitos mínimos.

A expectativa gerada pela licença, diz, tem o potencial de acirrar os ânimos entre aqueles que são a favor e os que são contra a reconstrução da estrada, fato que, no contexto amazônico, pode gerar novos conflitos entre indígenas e não indígenas na região.

“É uma irresponsabilidade aprovar a licença enquanto estamos avisando que há tantas pontas soltas”, afirma.

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