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Brasil

Hacker pivô da Vaza Jato estuda direito e vota no PT

?Delgatti, que se diz um lava-jatista arrependido e já anunciou seu voto no petista, não pestaneja quando questionado

FolhaPress

08/08/2022 17h03

Foto: Reprodução/Agência Brasil

Matheus Pichinelli
Araraquara, SP

No jardim de um restaurante às margens da rodovia Washington Luís, em Araraquara (SP), Walter Delgatti Neto, 33, não contém o sorriso ao lembrar da vez que derrubou a rede de uma lan house da cidade, por volta dos anos 2000. Era uma retaliação: o garoto de 11/12 anos e os amigos desconfiavam que uma turma rival andava trapaceando no jogo Tíbia. A rivalidade virou guerra e o pré-adolescente ruivo decidiu então rastrear os IPs dos computadores e interromper a conexão de um quarteirão inteiro. Não foi nem o primeiro nem o último ataque promovido por Delgatti -que, anos mais tarde, ficaria conhecido como “hacker de Araraquara”.

Preso em julho de 2019 na Operação Spoofing, de combate a crimes cibernéticos, ele entrou na mira da Polícia Federal após acessar mensagens do Telegram de metade da República, entre eles os procuradores da Lava Jato e o então juiz Sergio Moro, hoje ex-ministro da Justiça e filiado ao União Brasil. Segundo a PF, foi Delgatti quem repassou as mensagens para os editores do site The Intercept Brasil. A série Vaza Jato mostrou um conluio entre acusadores e o então juiz federal, o que mudou os rumos da operação e, por tabela, das eleições de 2022.

Responsável pela condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Moro foi declarado suspeito e perdeu boa parte do prestígio que o cacifava para disputar o pleito deste ano. Livre, Lula é hoje o favorito para vencer a disputa.

Três anos após a Operação Spoofing, Delgatti aguarda em liberdade o julgamento do processo que corre na Justiça Federal do Distrito Federal -se condenado, pode ser sentenciado a mais de 20 anos de prisão. Denunciado como mentor da suposta quadrilha que teria outros três integrantes (hoje também réus), ele teve a prisão preventiva revogada em outubro de 2020. Com condições: contra ele foram fixadas medidas cautelares, como monitoramento eletrônico e proibição de acessar sites, redes sociais ou aplicativos de mensagens.

Num sábado ensolarado e de poucas nuvens em sua cidade natal, Delgatti usava uma camiseta polo azul, que deixava as tatuagens no braço à mostra, bermuda e mocassim. Estava acompanhado de seu advogado, Ariovaldo Moreira. Tomou apenas água com gás -diz que não bebe, pois toma remédios para controle de ansiedade desde que foi diagnosticado com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), o que ajuda a compreender seu comportamento um tanto inquieto e o hiperfoco. Hoje, sua obsessão são os processos judiciais nos quais está envolvido.

“Sempre mexi com computador, desde os dez anos. Instalava programas para pegar senha do pessoal. É um dom que eu tenho. O TDAH me fez gostar dessa parte da informática, mas nunca pensei em estudar TI porque achava que já sabia tudo.”

Das medidas cautelares, livrou-se do uso da tornozeleira eletrônica em setembro de 2021. Nunca se acostumou ao aparelho, que apertava e vibrava em horários impróprios, mas diz que o dispositivo teve certa utilidade: certa vez, ao sair para um passeio de bicicleta até Bueno de Andrada, distrito de Araraquara conhecido pelas coxinhas douradas, ele observou dois motociclistas se aproximarem. Sentiu que ia ser roubado. “Eles perguntaram para onde estava indo, e quando viram minha tornozeleira deram meia-volta”, lembra, entre risos.

VERMELHO OFFLINE

Conhecido como Vermelho pelos amigos de infância, devido aos cabelos ruivos, hoje ralos, Delgatti mora em Ribeirão Preto (SP) desde que deixou o Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Estuda direito em uma faculdade particular, está a um ano e meio de se graduar e espera passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil para obter o registro profissional.

Delgatti diz, com certa vaidade, que virou objeto de estudo em sala de aula. Conta que não é raro ouvir um professor interromper a explicação sobre processo penal para citar o caso envolvendo o aluno célebre -a reportagem procurou a assessoria de imprensa da universidade, mas não obteve resposta.

O estudante diz se dar bem no campus. Alunos e professores simpáticos a Lula o veem como herói por ter, segundo ele, “ajudado a desmontar” a Lava Jato. Fãs de Jair Bolsonaro (PL) tampouco desgostam dele. Isso porque uns e outros têm um inimigo comum, Sergio Moro (o ex-juiz, segundo ele, não tem admiradores no curso). Já os colegas de Araraquara se afastaram, entre eles os que foram detidos e denunciados por causa da invasão do Telegram -entre eles Danilo Marques, amigo ainda dos tempos de lan house.

Passados três anos da prisão, Delgatti diz ter dificuldade de dimensionar tudo que aconteceu desde a divulgação das mensagens interceptadas. Parte dessa dificuldade, ele explica, vem da proibição de usar a internet: o hacker diz não saber o que as pessoas pensam sobre ele.

Há cerca de três meses, ele fez uma entrevista de emprego em uma empresa de softwares. O trabalho era em esquema de home office, com salário de R$ 7.000. Não rolou. Segundo ele, o currículo foi barrado quando chegou ao compliance. “Ninguém quer ter o ‘hacker do Moro’ na sua empresa.”

Delgatti pensou em trabalhar como motorista de aplicativo por um tempo, mas logo lembrou que a ideia não fazia sentido -não dá para trabalhar com app, afinal, sem que a Justiça saiba que ele está acessando um app. Segundo o advogado, eles reivindicaram diversas vezes o direito ao trabalho, mas os habeas corpus não foram julgados. O estudante, que vive sozinho numa quitinete, jura que não acessa a internet.

“Passo o dia vendo notícias na TV a cabo do prédio. Até Jovem Pan eu assisto.” Moreira, que trabalha pro bono no caso, também ajuda o cliente a pagar as contas.

Entre elas está a pensão de uma filha. A mãe da criança reconheceu o hacker na TV quando ele estava preso na Papuda e pediu um teste de DNA. Segundo o Ministério Público, ele se apresentou à mulher com nome falso e desapareceu após um curto relacionamento. Ela mora em São Simão, a 100 km de Araraquara.

Delgatti jura que não conhece a mulher -talvez, arrisca, seja de uma das únicas vezes em que quebrou sua regra de não beber, encheu a cara de Corote em uma festa e se envolveu embriagado. A paternidade foi confirmada pelo DNA e, desde então, o hacker mantém contato com a filha com ajuda do atual companheiro da mulher, com quem diz se dar melhor.

?AMIGOS DA PAPUDA

O acesso às mensagens da Lava Jato colocou a vida de Delgatti (e parte dos donos das contas invadidas) de cabeça para baixo e o levou a conhecer os principais personagens do mundo jurídico e político do Brasil.

Com alguns ele inclusive conviveu pessoalmente em sua passagem pela Papuda, onde diz ter ficado amigo de um carcereiro (que ele identifica como LP) e de personalidades como o ex-ministro Geddel Vieira Lima (MDB) -segundo ele, o apenado que mais chorava. Também foi quem mais o impressionou. “É a pessoa mais inteligente que já conheci. É um articulador. Aprendi a respeitar”, diz. Em liberdade condicional desde fevereiro, Geddel subiu recentemente num palanque na Bahia e declarou apoio a Lula.

O ex-senador Luiz Estevão (PRTB) era outro companheiro ilustre, embora cumprisse pena em regime semiaberto e passasse boa parte do dia fora. Preso em março de 2016 por corrupção ativa, entre outros crimes, também foi condenado por corromper policiais para bancar a reforma de sua ala no centro de detenção.

Em março de 2020, Estevão migrou para a prisão domiciliar pois teve sintomas de Covid-19. Delgatti ri quando se lembra do episódio: alega que o ex-colega de prisão passou pimenta-do-reino no nariz para espirrar e engoliu uma grande porção de açúcar para obter um pico glicêmico.

Outro colega “muito bonzinho” era o empresário Sérgio Cunha Mendes, vice-presidente da construtora Mendes Júnior, que deixou a Papuda em novembro de 2019, após decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que derrubou prisões em segunda instância. “Era quem puxava as orações. Ali foi a primeira vez que convivi com um bilionário.”

A reportagem tentou contato com advogados e assessores dos citados, mas não obteve resposta.

‘DÁ PRA CONTAR A HISTÓRIA DA INCONFIDÊNCIA SEM CITAR TIRADENTES?’

Delgatti diz que não teve pudores ideológicos ao invadir o celular de políticos de todas as correntes, como se tentasse provar que sua ação não teve motivação política. A lista é grande. “Eu invadi o Lula, invadi o [Michel] Temer, invadi a Dilma [Rousseff]. Outro foi o [Flávio] Dino, lá do Maranhão, gostei dele. E invadi o Bolsonaro. Peguei o STF e o STJ [Superior Tribunal de Justiça] quase que inteiros. Acessei as conversas de deputados de todos os partidos. E me passei pelo Cid Gomes para conversar com a Manuela D’Ávila”, diz, quase ecoando o protagonista do filme “Prenda-me se for capaz”. “Não vejo razão para algum político não gostar de mim. Até porque não vazei nada que fosse pessoal. Só quem não gosta de mim é o pessoal da Lava Jato.”

Dos hackeados, impressionou-se com Deltan Dallagnol. “Ele tinha uma alta capacidade de manipular e articular. Não me refiro à finalidade, mas que era inteligente, era.”
Moro, por outro lado, foi uma decepção. Dallagnol, diz o hacker, já tinha entendido a besteira que o ex-juiz estava prestes a fazer ao assumir o Ministério da Justiça a convite de Bolsonaro. “Moro pode ser estúpido, mas o Deltan não é.”

Outro que ganhou a admiração do hacker foi o ministro do STF Gilmar Mendes, que fulminou Moro ao dizer que ou “estamos diante de uma obra ficcional fantástica que merece o Prêmio Nobel de Literatura, ou estamos diante do maior escândalo judicial da história”, referindo-se ao impacto da Vaza Jato. O elogio inflou o ego do hacker pois, não fosse a interceptação, diz Delgatti, Lula estaria preso até hoje. E ele se ressente: o ex-presidente nunca lhe agradeceu.

Delgatti também se irrita quando fica sabendo que os advogados de defesa do petista reivindicam os méritos pelas anulações das sentenças contra o ex-presidente sem citá-lo. Acrescenta que não viu e já não gostou do recém-lançado “Amigo Secreto”, filme que conta os bastidores da Vaza Jato. “Dá pra contar a história da Inconfidência sem citar Tiradentes?”, questiona, queixando-se por não ter sido ouvido.

À reportagem, a diretora Maria Augusta Ramos afirma que o filme “acompanhou alguns jornalistas que não tiveram contato com Delgatti, inclusive para preservá-lo como fonte anônima”. Ela lembra que o próprio Leandro Demori, jornalista envolvido na produção das reportagens do Intercept e também no documentário, afirma ser importante preservar a fonte. “Walter teve uma importância fundamental e a história dele deve ser contada. Mas a proposta do meu filme não era essa.”

DE LAVA-JATISTA ARREPENDIDO A HERÓI PETISTA

Embora diga que esse reconhecimento é importante, Delgatti admite que ficou preso ao personagem e nem sempre isso é agradável. “De futebol ninguém quer falar comigo”, ironiza.

Todos fazem as mesmas perguntas, reclama. Ainda assim, ele não se contém quando ouve alguém ao lado falar do caso do “hacker de Araraquara”, principalmente quando está no Uber. “Outro dia estavam falando de mim na piscina de um hotel em Ribeirão Preto. Mas fiquei quieto.”

Delgatti conta, orgulhoso, que já virou tema até de música -ele prova pedindo para o Moreira procurar no YouTube a canção “O Hacker e o Rei”, do grupo Tapioca Brasil. Seu defensor, que já foi reconhecido na rua como “o advogado do hacker”, conta que o cliente foi tratado como herói e deu até autógrafo durante o lançamento da biografia do ex-presidente Lula escrita por Fernando Morais, no fim de 2021. Araraquara foi a primeira cidade com lançamento do livro e, no Facebook, o autor informou que doaria os direitos autorais dos livros vendidos a “Vermelho”.

Segundo Moreira, Morais foi uma das poucas pessoas que se prontificaram a ajudar Delgatti financeiramente. Dias atrás, a revista Fórum fez uma vaquinha online durante uma live com o hacker -na ocasião, ele fazia questão de dizer que não estava tocando no teclado, e que estava ao lado do advogado no computador. “As campanhas ajudam. Mas eu preciso trabalhar.”

Durante um tempo, por causa de outras encrencas judiciais (como ser preso ao tentar entrar sem pagar no Beto Carrero), Delgatti foi tratado como estelionatário. O hacker também já respondeu a processos por uso de documento falso e tráfico de substâncias. Segundo ele, mesmo quem queria acesso às mensagens interceptadas não queria muita proximidade com o invasor.

Para Moreira, os interessados queriam as mensagens, mas não o mensageiro, tratado como “leproso”. Isso só começou a mudar após a anulação das sentenças de Lula. Em maio, o Ministério Público Federal pediu arquivamento do processo que apurou se houve mandante ou financiador por trás da Vaza Jato. O pedido foi baseado em um relatório da PF que concluiu que Delgatti e os amigos agiram por conta própria.

O hacker não diz com todas as letras, mas deixa entrever o mínimo que espera do ex-presidente caso ele seja eleito em outubro. “O Daniel Silveira [que recebeu indulto de Bolsonaro] fez muito menos pelo Bolsonaro do que eu fiz pelo Lula.”

?Delgatti, que se diz um lava-jatista arrependido e já anunciou seu voto no petista, não pestaneja quando questionado sobre o que pretende fazer quando puder ficar online de novo. “Quero ter uma rede social em meu nome e ter voz pra poder me defender e contar a minha versão da história.”

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